domingo, 19 de dezembro de 2010

FÉ É GRAÇA NA SOCIEDADE DO NARCISISMO

“Pureza de coração é desejar uma coisa só...”
Sören Kierkegaard

A primeira coisa que vi na TV, nessa manhã de domingo (19/12), foi uma matéria realizada numa igreja evangélica de Brasília, relacionada à celebração de uma de suas “campanhas”, cujo mote central era o compromisso que Deus tem com a realização dos sonhos e desejos das pessoas. Celebrava-se a realização desses desejos alcançados em 2010, e projetava-se 2011 como um ano de profundas e maiores vitórias e realização de outros tantos desejos. 
De fato, a realização de sonhos e desejos aparece mesmo na Bíblia. No Salmo 37,4, por exemplo, o texto é enfático: “alegre-se no Senhor, e ele satisfará os desejos do seu coração”. Obviamente, versículos como este devem ser lidos no contexto maior onde se situam. Mas a princípio, a questão de que Deus se agrada em responder aos desejos humanos está posta de forma clara e simples.
Não obstante essas observações, o que nós chamaríamos de uma “psicologia bíblica” nos leva a levantar algumas questões. Isso porque na Bíblia, esse mesmo ser humano que tem o privilégio de alcançar o favor de Deus, tem sua estrutura íntima descrita como contraditória, às vezes perversa, fonte de inúmeros males, insondável por outros seres humanos, e muitas vezes totalmente corrompida. Ou seja, o interior deste “ser desejante” é descrito como falso e enganoso, como, por exemplo, na meditação do profeta Jeremias: “enganoso e perverso é coração humano, mais do que todas as coisas: quem o conhecerá?” (17,9). Mesmo nos Evangelhos os traços dessa psicologia pessimista acerca da essência humana podem ser encontrados (Cf. Mateus 15,18-20).
Aqui, acho que a psicologia bíblica – rústica, intuitiva e pré-científica sim, afinal, há alguma outra que não seja? – se encontra com a psicanálise, pelo menos em dois aspectos. Primeiro, na confissão de que somos seres de desejo. Segundo, na confissão de que, como seres de desejo, somos fraturados no mais íntimo de nós mesmos, cindidos por uma constituição ambivalente, marcados por pulsões de vida e de morte, de egoísmo e de altruísmo, de abertura ao mundo e de fechamento sobre o si-mesmo, de amor e de ódio. Certamente nossos desejos se alicerçam sobre essa base ambivalente que nos marca ineludivelmente.
Alguns autores, na maior parte psicanalistas e sociólogos, têm adjetivado a este tempo com expressões muito interessantes. Algumas bem jocosas, sem dúvida. Entre elas estão a “sociedade do espetáculo” (Guy Debord), a “sociedade de consumo” (Jean Baudrillard), a “cultura do narcisismo” (Christopher Lasch), a cultura do “imperativo do gozo” (Zizek Slavoj), a “sociedade depressiva” (Elizabeth Roudinesco), a “sociedade individualizada” (Zygmunt Bauman), entre tantos outros exemplos de que dispomos hoje nas ciências humanas.
Todas essas análises querem nos ajudar a situarmo-nos, como seres desejantes, num entorno cultural e social que, sem dúvida, nos forma, nos molda, deixando indubitavelmente sua marca no que quer que chamemos de “natureza humana”. Não somos “produto do meio”, como se dizia antigamente nas aulas de sociologia do ensino médio. Somos o próprio meio, pura e simplesmente. O que quer que sejamos, psíquica e antropologicamente, o somos em comunhão de essência com nossa cultura, que, como os apelidos acima nos ajudam a ver, tem as marcas do narcisismo e do individualismo como motes muito evidentes.
Sendo assim, minhas perguntas são as seguintes:
O que desejamos?
Se somos o nosso desejo, o que somos?
Como saber se nossos desejos não são manifestações de nossa ambivalência, sendo, portanto, enganosos e ilusórios?
Como conjugar uma teologia bíblica que reconhece a graça e o favor de Deus em atender aos desejos humanos, com o desejo de sujeitos ambíguos, ambivalentes, cindidos no mais íntimo de sua estrutura, e desconhecidos para si mesmos?
Como apregoar a graça e o favor de Deus em função dos desejos humanos numa sociedade marcada pelo narcisismo e pelo individualismo, francamente contraditórios com a teologia bíblica, marcada pelo descentramento do si-mesmo e pelo chamamento em direção ao Outro?
Como discernir o discurso afinado com a teologia bíblica da graça e do favor de Deus em função dos desejos humanos, do discurso que faz do nome de Deus um joguete religioso na “sociedade do narcisismo e do consumo”?

2 comentários:

Marcos Fellipe disse...

Sempre um prazer ler seus textos companheiro Paulo... Na sociedade do espetaculo, individualista narcisista... é sempre um desafio perceber além de nossos próprios desejos, os outros que estão em nossa volta... Boa reflexão!! Parabens pelo blog...

Valdeir Almeida disse...

Paulo,

Vim até seu blog, após ler um comentário seu no blog do Marcos Monteiro. Gostei do seu comentário lá e agora vim conhecer o "Ópio Coisa Nenhuma".

Parabéns da forma como você escreve, original, crítica e inteligente.

Abraços.