sexta-feira, 13 de abril de 2012

CONVERSAS SOBRE O CORPO, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO


Ou "Como voltei, enfim, para a Religião"


Para Jorge Nery

Em minha trajetória acadêmica, sempre tive enorme dificuldade para escolher temas de pesquisas. Os TCCs que escrevi foram sempre precedidos por demoradas batalhas interiores pela busca do tema que, além de executável, me trouxesse alegria e satisfação em sua produção. Estou entre aqueles que creem que o prazer deve preceder e perpassar qualquer atividade intelectual. Ler por obrigação, pesquisar por obrigação, é tão insuportável quanto o trabalho forçado a que as pessoas se submetem, movidas pela necessidade de sustentarem a si mesmas.
Também estou entre aqueles que sofrem de um mal extremamente pernicioso à vida acadêmica: o mal do foco dividido. Freud diria que, no fundo, essa indecisão e esse foco dividido são marcas sintomáticas dos neuróticos. Elas teriam lá suas motivações inconscientes, que somente o trabalho terapêutico poderia trazer para a luz da consciência. Para meu consolo, a neurose em Freud, ressalvada a dimensão de desconforto e de sofrimento psíquico que ela possa nos infringir, é quase uma condição de normalidade da existência. Como diria Jean-Yves Leloup, vivemos sempre em estado de normose, isto é, nossa normalidade é a neurose. O setting analítico, portanto, vai ter que me esperar um pouco mais.
Agora, às portas de uma nova etapa da caminhada acadêmica, vejo-me outra vez constrangido a ter que obedecer a prazos quanto à escolha de um campo temático de estudos. Dura tarefa a de ter que eleger um objeto de estudos ao qual vamos nos dedicar pelos próximos dois anos, e ter que rejeitar o mundo inteiro. Consola-nos apenas o fato de que tais correntes que nos atam são temporárias, e que, embora por esses anos elas apertem nossos braços com muita força, mais ali à frente elas se quebrarão e o mundo inteiro estará de volta à nossa disposição (certamente com novas correntes em suas mãos).
Todavia, um passo muito importante já foi dado. Não há reflexão sobre qualquer objeto que não se dê a partir de certas lentes que nos precedem. Há tempos o mito da neutralidade científica foi relativizado. Portanto, o primeiro passo na determinação de uma pesquisa científica deve consistir na escolha do modo de olhar os objetos, no modo de interroga-los, no modo de aproximação a eles. Creio ter resolvido esse problema quando decidi me situar num jeito de fazer pesquisa que pressupõe que o discurso – sobretudo o científico –, mais do que aquilo que “desvela” ou “representa” o real,constrói as realidades acerca das quais pretende discursar. Dessa forma, o discurso científico insere-se no campo das práticas sociais como uma prática entre outras.
Uma prática acadêmica e científica que se propõe desveladora do real e com o potencial de representação dos objetos do mundo se situará sempre acima de outros discursos que destoem dos seus próprios. Assim, o correlato dessa produção de saber será uma hierarquização dos conhecimentos, que torna as pessoas da academia e os cientistas arautos de verdades epistemologicamente superiores às verdades do dito “senso comum”. Decidi me situar fora dessa pretensão, ao assumir que minha atividade acadêmica e científica corrobora o feixe de relações presentes no tecido social que vão construindo – muitas vezes naturalizando – isso que chamamos de “realidade”. Fazer ciência é uma prática social como qualquer outra.
Nos últimos cinco anos, utilizei alguns instrumentos oferecidos pelas ciências humanas e sociais – especialmente pela Psicologia Social – para pensar sobre o estado de Alagoas em sua relação com a economia de matriz canavieira. A eleição desse objeto de estudos havia sido feita muito mais com base em minha vivência pessoal de pastor do que em critérios puramente intelectuais. Alguém já disse acertadamente que “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”. Neste tempo, os dilemas comunitários de uma vila no entorno de uma usina sucroalcooleira me catapultaram para o universo de temas envolvendo a vida política, econômica e cultural de Alagoas. Lembro-me de ter feito uma primeira incursão a esses temas com os referenciais da Teologia da Libertação – pensando no tema daidolatria de mercado –, para logo depois me munir de outros instrumentais de análise.
Tempo fecundo, que me legou coisas interessantes. Além de uma ação pastoral voltada especialmente para os dilemas advindos desse contexto, esse tempo me legou uma grande produção de artigos, organizados posteriormente em forma de livro, cujo projeto já foi aprovado pela editora da Universidade Federal de Alagoas. Além disso, esse tempo me legou dois estágios importantes: um em Psicologia Social Comunitária, realizado junto a trabalhadores da referida usina, e outro em Psicologia Educacional Escolar, realizado em uma escola da rede municipal situada também na referida comunidade de moradores no entorno de uma usina sucroalcooleira. Finalmente, esse tempo me legou uma pesquisa de Iniciação Científica, ainda em curso, cujos objetos foram os modos de vida, os processos de subjetivação e as possibilidades de resistência no contexto de uma comunidade canavieira em Alagoas. Isso sem contar as inúmeras amizades que permanecem até então, e uma enormidade de experiências cativantes e enriquecedoras.
Meus pés, entretanto, agora pisam outro chão.
Dentre o mundo de possibilidades que se abrem agora, e que podem ser transformadas em objeto de pesquisa, volto-me com algum interesse especial para os temas da sexualidade em sua interface com os discursos religiosos. Sempre evitei – por razões que nem eu sei discernir direito – os temas religiosos na academia, com exceção, obviamente, do tempo da formação em Teologia. Na Filosofia flertei com os temas da Epistemologia, da Educação e da Filosofia da Ciência, sempre em diálogo com Edgar Morin. Acabei de descrever meu itinerário de preocupações não-religiosas dentro da Psicologia. Agora, decidi fazer da religião novamente objeto de preocupação acadêmica. Obviamente, não desejo tomar a religião em si mesma, como faz boa parte dos teólogos. Desejo toma-la como fenômeno social. Volto à religião, mas não para fazer Teologia. Teologia a gente vai fazendo na vida, na comunidade de fé. E os seminários teológicos que me perdoem, mas não há melhor escola de Teologia do que uma comunidade de fé que se abre a dialogar com as demandas concretas de seu tempo.
Interessa-me, por agora, pensar naquilo que alguém já chamou de “governo dos corpos”. Supõe-se com rapidez que a religião opere com muita eficácia em “governo das almas”. Mas não há uma coisa sem a outra. Foucault, por exemplo, chamou ao poder religioso da Idade Média e da Modernidade de poder pastoral. Este seria uma espécie de governo das almas, com vistas à salvação do rebanho. Seria um poder perscrutador da intimidade do governado, mas que implicaria também numa entrega sacrificial do governante. “O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”, já dizia a sabedoria do Evangelho.
Creio que Max Weber nos mostrou que, ao operar um governo religioso das almas com sua teologia de predestinação, o calvinismo dos séculos XVII e XVIII acabou por produzir uma ética que se tornou correlata ao desenvolvimento do capitalismo emergente. Qualquer discurso produz efeitos que escapam às intencionalidades de seus enunciadores. Estudar os efeitos dos atuais discursos religiosos de governo do corpo é o que vislumbro fazer a partir de agora.
Esse governo religioso das almas está na base também, junto com a contribuição de outros discursos de nossa cultura ocidental, do tipo de sexualidade que se tornou normativa e hegemônica entre nós. Pensando estritamente no campo da sexualidade, nossos corpos ainda são governados por uma teia maciça de discursos religiosos que lhe disputam. É preciso termos em mente, contudo, que este governo dos corpos não é em hipótese alguma exclusivo da religião. O bem-viver dos corpos saudáveis, a longevidade biológica, a normatividade estética dos corpos perfeitos, são exemplos de discursos que disputam nossos corpos. Quase sempre eles são sancionados pelo conhecimento científico. Neste sentido, compete-nos perguntar: que diferença haveria entre um governo dos corpos e da sexualidade exercido pela religião, e outros tipos de governo dos corpos, tais como os que exemplificamos?
Talvez um esboço de resposta seja este: a diferença consiste em que o governo dos corpos operado pela religião se assente no discurso do sagrado, do absoluto, que muitas vezes, sem qualquer justificação além do direito de governar que caberia ao sagrado (transferido aos seus representantes humanos), precisa enfrentar um campo de objeções mais árduo, numa cultura marcada pelo pluralismo religioso e cultural; enquanto isso, o governo dos corpos operado pelos discursos do “bem-viver” escoam numa base laica, que em nome de uma “qualidade de vida” não enfrentam as mesmas objeções, possuindo um caráter maior de unanimidade, já que representam um princípio moral “universal”.
Interessa-me, obviamente, as formas capilares, cotidianas, minúsculas, microfísicas, com que a religião opera seu governo sobre os corpos e sobre a sexualidade. Contudo, um fato novo de nossa época, ao menos no Brasil, vem capturando a minha atenção com mais força: a utilização da plataforma político-institucional como vetor desse governo religioso dos corpos. Estaríamos diante de uma das novidades da Pós-modernidade, que é o retorno da influência do religioso na arena da política de estado, uma vez que a Modernidade confinou sua importância à esfera privada da vida.
Os estados laicos devem ser regidos por princípios livres de quaisquer ideologias religiosas, embora essas tenham livre oportunidade de governar a vida de seus adeptos. O atual uso da plataforma política como forma de governo religioso dos corpos e da sexualidade inverte essa configuração: aquilo que era próprio do governo da vida privada de sujeitos que se submetiam livremente a certas ideologias religiosas, passa a ganhar forma de estratégia política de governo dos corpos de todos. Como isso é possível em um estado laico? Estaríamos diante de uma anomalia e de uma contradição do uso da democracia, ou diante de uma de suas possíveis virtualidades?
Ditas essas coisas, meu atual interesse de pesquisa se situa num campo de “lutas transversais”, no campo da subjetividade, lutas pelo direito à diferença, lutas contra o imperialismo da norma e da uniformidade dos modos de vida. Ao falar sobre o governo dos corpos e de sua docilização, Foucault dizia que o objetivo destes era esvaziar o corpo de sua potência política e maximizar sua força produtiva, porque somente um corpo dócil pode ser produtivo. O problema que colocamos é de outra natureza. Acreditamos que o tipo de governo dos corpos e da sexualidade presente em certos discursos religiosos opera outro tipo de docilização e de esvaziamento: o esvaziamento de suas possibilidades éticas, entendidas aqui como “cuidado de si” e como todas as virtualidades presentes na conduta que os sujeitos podem fazer de suas próprias existências e de seus corpos.
O campo recoberto pelos discursos religiosos de governo político dos corpos é mais vasto que o campo estrito da sexualidade. As discussões da bioética envolvendo o aborto, a eutanásia, a utilização de células-tronco embrionárias, a produção de alimentos transgênicos estão aí como prova. Contudo, numa pesquisa cientifica é preciso demarcar territórios com clareza. Logo essas possibilidades investigativas estarão à minha disposição. Por hora, é preciso fazer recortes mais precisos, e o campo da sexualidade parece bastante instigante pra início de conversa. Afinal, ars longa vita brevis!

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