terça-feira, 13 de outubro de 2009

LANÇAMENTO E DIVULGAÇÃO DE LIVRO‏


Olá minha gente boa!

Nos últimos dias 08, 09 e 10 de outubro estivemos reunidos em Salvador, na Igreja Batista da Graça, participando do encontro teológico Transformando a Missão: Justiça, Espiritualidade e Cidadania. Muita coisa boa ocorreu por lá nesses dias. Eu resumiria tudo em alguns tópicos ligeiros: (1) o prazer inefável de estar na Bahia; (2) o reencontro com amigos de longa data, a quem não víamos a muito tempo; (3) excelentes palestras e oficinas debatendo o sentido da missão eclesial no Nordeste; (4) o acesso a muita literatura teológica de qualidade indiscutível.

No meio disso tudo a Aliança de Batistas do Brasil lançou sua segunda publicação. Depois do grande sucesso de Quatro frágeis liberdades (2005), agora chegou a vez de Religião, utopia e sociedade - Diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shall. O livro oferece ao grande público os resultados do 1º Fórum Protestantismo, Teologia Pública e Relevância Profética, realizado no Rio de Janeiro em 25 e 26 de maio de 2007. A mim coube a transcrição das falas e a Apresentação do livro. Mais abaixo, segue o texto da Apresentação, e caso você se interesse pelo livro, entre em contato comigo.

Se você desejar saber mais sobre a Aliança de Batistas do Brasil, clique aqui: www.aliancadebatistas.com.br. Caso queira conferir o layout do livro, clique aqui: www.editoralivro.com.br.

Ah, o livro custa apenas R$ 20,00.

Um abraço!

APRESENTAÇÃO

Uma leitura para fazer “arder o coração”

É com grata satisfação que a Aliança de Batistas do Brasil traz agora ao alcance de um público maior as comunicações do primeiro fórum Protestantismo, Teologia Pública e relevância profética em diálogo com as éticas sociais de Martin Luther Jr. e Richard Shaull, realizado na cidade do Rio de Janeiro durante os dias 25 e 26 de maio de 2007. O livro que o leitor e a leitora têm em mãos consiste na versão textual das falas ali apresentadas. Um dos objetivos técnicos dessa publicação consistiu em preservar o caráter informal e espontâneo de cada palestra. Por isso, os textos se apresentam num formato suavizado em relação à formalidade acadêmica. Não obstante, todo trabalho de transcrição textual de comunicações orais implica em uma intrusão mínima do redator. Consciente disto, nosso trabalho seguiu na tentativa de uma intrusão não-conteudística, mas atida aos aspectos formais da apresentação dos textos, com mínimas reformulações conceituais ali onde a clareza está prejudicada pelos improvisos e imprecisões da comunicação oral.

O primeiro capítulo nos oferece uma reflexão exclusivamente dedicada à atividade e ao pensamento de Martin Luther King Jr. (MLK). Nela, Israel Belo de Azevedo, pastor batista e ex-reitor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, está interessado em responder acerca de qual seria o legado e qual o significado da obra de MLK. Além disso, está interessado em refletir acerca de quais respostas MLK daria às questões mais prementes de nossa agenda atual, uma vez que vivenciamos uma configuração conjuntural inteiramente nova. Israel Belo de Azevedo apontará ainda para três rupturas no pensamento e na atuação de MLK frente a consagradas dicotomias do universo teológico e pastoral: ação versus oração, erudição versus piedade, e ministério local versus ministério nacional. Privilegiando aspectos biográficos e peculiares à personalidade de MLK, Israel Belo de Azevedo ainda trará para a discussão alguns elementos presentes na vida deste pastor batista estadunidense considerados pertinentes para aqueles e aquelas que se ocupam da atividade pastoral em nosso contexto brasileiro.

No segundo capítulo o Dr. Ken Sehested estabelece um diálogo crítico entre o imperialismo estadunidense no século XX e a denúncia profética de MLK, convocando-nos a partir disso à insistência nos projetos utópicos do Evangelho. Partindo de exemplos de sua própria experiência prática, assim como da análise de eventos históricos relacionados à política internacional estadunidense no século XX, Ken Sehested procura nos mostrar de que maneira os sonhos e as imposições dessa política internacional foram se constituindo como pesadelos para o resto do mundo, sobretudo para o Oriente Médio e para a América Latina. MLK aparece aí como voz crítica e profética de contraponto à este imperialismo tocado sob as marcas do racismo, do militarismo e do materialismo. O Dr. Ken Sehested ainda denunciará uma certa domesticação da memória de MLK, ocorrida nos Estados Unidos, e nos lembrará que a obra e o pensamento deste ainda nos serve como forma de afirmação das possibilidades utópicas do Evangelho em nosso contexto atual.

Raimundo César Barreto, pastor batista e presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr., nos trará no terceiro capítulo uma reflexão preocupada igualmente com os legados teológicos de MLK e de Richard Shaull. Nosso autor faz questão de iniciar sua comunicação com algumas pontuações acerca da Aliança de Batistas de Brasil como entidade ecumênica, libertária, dialógica e comprometida com a justiça social. Conforme o mesmo, são essas marcas que colocam a Aliança de Batistas do Brasil em estreita ligação com os legados daqueles dois homens. Em seguida, sua contribuição nos brinda com uma reflexão acerca do status propriamente teológico de MLK e Richard Shaull. Na linha de José Casanova e David Tracy, Raimundo César Barreto entende que MLK e Richard Shaull podem ser compreendidos, já em sua época, como “teólogos públicos”. Seguindo ainda o construto teórico de Gramsci relativo às funções dos intelectuais orgânicos, dirá que ambos também podem ser compreendidos como “teólogos orgânicos”. Na sequência, Raimundo César Barreto nos coloca em contato direto com alguns dos principais tópicos do pensamento teológico de MLK e Richard Shuall, a fim de que estes nos ajudem no resgate da relevância da teologia na nossa ação prática perante a sociedade.

No quarto capítulo, o cubano Francisco Rodez (Fraternidade Batista Cubana) desenvolve uma sucinta meditação bíblico-teológica sobre o tema da utopia e do reino de Deus. À luz dos legados de MLK e Richard Shaull, Francisco Rodez nos apresenta um exercício de leitura bíblica que deseja ser eficaz como contraponto a um suposto realismo e a um suposto fim das possibilidades utópicas que busca espaço na mentalidade latino-americana. Este autor também nos apresenta de forma simples, mas não simplista, as razões do fracasso do projeto socialista em países como Cuba. Nesse sentido, além da militância político-ideológica, os anseios pessoais e os valores familiares são valorizados como elementos necessários à construção de um mundo novo. Em sua meditação, Francisco Rodez também deseja evitar toda atitude triunfalista que se poderia deduzir de um projeto de utopia cristã. Remete-nos à crucificação de Jesus de Nazaré como exemplo de um projeto utópico fracassado. Mas também nos remete à sua ressurreição como afirmação de todas as possibilidades utópicas inerentes ao símbolo “reino de Deus”.

Abigail Evans, professora do Seminário Teológico de Princeton, dedica sua meditação especialmente a Richard Shaull. Neste quinto capítulo ela nos oferece um esboço biográfico desse pastor presbiteriano cuja atuação deixaria marcas indeléveis na história do protestantismo brasileiro e na própria teologia cristã latino-americana. Dando ênfase aos contornos políticos que marcaram a sociedade brasileira a partir da década de 1960 – sobretudo em função do golpe militar de 1964 –, a autora evoca as ênfases centrais de um pensamento e de uma práxis notadamente marcada por tensões internas em relação à Igreja Presbiteriana do Brasil, caracterizada à época pela rigidez doutrinária e pelo conservadorismo político. Abigail Evans também trabalhará com a tese de que os elementos fundamentais daquilo que futuramente se articularia com uma Teologia da Libertação – a crítica profética das injustiças sociais, a vocação ecumênica, o chamado às comunidades eclesiais a assumirem sua vocação histórica como vetores de libertação, e etc. – têm seus brotos já no pensamento e na atuação de Richard Shaull.

No sexto capítulo, Roberto Schuler, pastor da Igreja Reformada da Suíça e atual reitor do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, nos oferece mais do que uma simples reflexão: ele nos oferece um desabafo e um chamado a que o protestantismo brasileiro reencontre suas matrizes proféticas e verdadeiramente “protestantes”. Denunciando um espírito de conformismo e resignação como próprio do protestantismo brasileiro atual, Roberto Schuler busca fundamentar sua crítica tanto na tradição do profetismo veterotestamentário quanto numa rica tradição profética presente na própria história do protestantismo. Sua reflexão dedica espaço especial para uma crítica das posturas reacionárias adotadas pelas igrejas protestantes brasileiras durante o regime militar que se instalou no Brasil a partir de 1964, em confronto com a postura crítica tanto de outras igrejas como de outros atores da sociedade civil. Roberto Schuler também dedicará espaço em sua reflexão para propor os eixos fundamentais de uma teologia pública, que, segundo o autor, além do envolvimento com as questões sociais, deve assumir como valores a relevância e as possibilidades dos riscos inerentes à sua concretização.

No penúltimo capítulo deste livro Luis Longuinni Neto, pastor presbiteriano ligado ao Instituto Mysterium, partirá da prática pastoral de MLK e Richard Shaull para pensar em elementos fundamentais a uma teologia da missão. Sua tese de partida consiste em que “a missão é da igreja, mas a agenda é do mundo”. Luis Longuinni Neto faz questão de acentuar a dimensão pastoral presente na práxis tanto de MLK e Richard Shaull, a quem adjetiva de “duas vocações rebeldes”. Dessa dimensão pastoral presente nestas vocações rebeldes, ele deriva alguns elementos que considera pertinentes e necessários a uma teologia da missão em nosso contexto. Entre tais elementos o autor destaca o sofrimento dos pobres como ponto de partida da missão, a tarefa ecumênica, o diálogo com a teologia prática e com uma pastoral relevante, e a busca pela formação de cristãos conscientes.

Encerrando o conjunto de textos deste livro, o teólogo cingalês Devaka Premawardhana nos oferece uma discussão intercalando temas da Teologia Negra e da Teologia das Religiões. Em consonância com as intuições de James Cone, o autor procura estabelecer um diálogo crítico entre o pensamento de MLK e de Malcolm X. Devaka Premawardhana entende que nestas personagens existem tanto elementos favoráveis como desfavoráveis à construção de uma Teologia Negra que seja pertinente em face dos dilemas raciais ainda candentes em nosso tempo. No que tange à Teologia das Religiões, o autor buscará por contribuições na própria tradição protestante. Seu olhar crítico enfatizará a atitude etnocêntrica característica das missões protestantes chegadas ao Brasil em meados do século XIX. Nesse sentido, a grande provocação de Devaka Premawardhana consistirá numa ousada hipótese missiológica que assume a presença do Espírito de Deus nas culturas mundiais, antes mesmo da presença missionária representante dos centros de poder econômico. Para o autor, a atitude de MLK junto a Gandhi deve se constituir como paradigma das relações entre os cristãos e as pessoas pertencentes às demais religiões. Dessa forma, Devaka Premawardhana preconiza uma atitude reinocêntrica como item central de uma Teologia das Religiões que contribua na construção de relações fraternas entre as culturas humanas.

Nossa esperança, em primeiro lugar, é que esta publicação comece a preencher a grande lacuna existente no universo editorial evangélico brasileiro no que tange aos legados teológicos de Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Mas como Aliança de Batistas do Brasil, nosso desejo não se circunscreve à mera inserção no mercado de literatura teológica. Portanto, em segundo lugar, nosso objetivo terá sido alcançado se este livro que o leitor e a leitora têm em mãos servir-lhe como vetor de inquietação. Mais do que um saber teológico academicamente sistematizado, as páginas que se seguem dão testemunho de dois legados teológicos construídos no calor de posicionamentos muito concretos. Falo de uma teologia excepcionalmente feita à base de confrontos, rupturas, riscos, ameaças, mas também feita à base de uma inquebrantável esperança fundada na certeza da presença confortante de Deus. Se esta leitura lhe fizer “arder o coração” (Lc 24,32), ainda que minimamente, nosso objetivo terá sido alcançado.

Paulo Nascimento

Maceió-AL, 20 de agosto de 2009



sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O ONIPRESENTE AROMA DA MORTE


A queimada dos canaviais alagoanos e seus efeitos sim-bólicos e dia-bólicos


As nefastas influências dos usineiros da cana na sociedade alagoana seguem ininterruptas, e sem prazo de vencimento ou data de validade. Noutra oportunidade eu chamava a atitude predatória dos mesmos de vampirismo econômico. Com essa metáfora eu fazia referência à dieta feita à base do “sangue dos trabalhadores”, como sendo o pão de cada dia da aristocracia agrária nesse estado. E quero continuar explorando a metáfora do vampirismo, mas agora para falar da relação parasitária e predatória dos usineiros frente à Natureza.

Digo todas essas coisas em função da época de moagem da safra que se prenuncia agora. Com ela, iniciam-se as queimadas dos canaviais, condenadas pela edafologia há mais de um século. Mas não se deve estranhar que uma oligarquia agrária que sonega anualmente 98,25% do montante de ICMS devido aos cofres públicos desse estado, também faça vistas grossas a um postulado científico que prevê a conservação dos solos e o bem-estar das comunidades do entorno dos canaviais.

Eu, por exemplo, resido muito próximo à zona dos canaviais. A esta época de queimadas tenho agregado às péssimas condições de saneamento básico do meu bairro, o emporcalhamento do ar pela fumaça das queimadas. E no meu caso os efeitos se agravam, uma vez que psicologicamente isso produz em mim uma sensação de onipresença maligna dos usineiros, que quando não atingem nossa cidadania de uma forma, atingem de outra. Mas talvez isso seja somente o produto inebriante da fumaça tóxica das queimadas!

Faz um ano e meio, numa discussão entre teólogos aqui em Maceió, propus uma avaliação das agressões ecológicas geradas pela atividade canavieira alagoana. Gostaria de citar outra vez um fragmentozinho do meu discurso naquela oportunidade.

***

A queimada dos canaviais é um procedimento corriqueiro que antecede a moagem. Sua finalidade é reduzir os custos dos usineiros com a colheita da cana, já que o rendimento do trabalhador cortador de cana ou da colheitadeira é triplicado quando não há queimadas (isto é, quando a palha é cortada). Conforme Manoel Ferreira, “o uso do fogo na agricultura é condenado há mais de um século pelos manuais de conservação do solo e da edafologia, pelas conseqüências negativas por ele provocadas na produtividade da terra”. Vale registrar os casos de Cuba e das Filipinas, que a partir da década de 1970 mecanizaram toda colheita da cana, utilizando a palha como adubo orgânico e, por tabela, reduzindo vertiginosamente os impactos ambientais provenientes das queimadas.

As queimadas reduzem os custos e maximizam os lucros do setor sucroalcooleiro. No entanto é a sociedade que fica com os prejuízos causados por elas. Esse processo agrícola arcaico tem como ressonância a produção concomitante de múltiplas vítimas: na fauna, na flora e conseqüentemente na sociedade humana.

Manoel Ferreira nos informa que as queimadas causam a liberação para a atmosfera de ozônio, de grandes concentrações de monóxido (CO) e de dióxido de carbono (CO2), que afetam a saúde dos seres vivos, reduzindo também as atividades fotossintéticas dos vegetais, prejudicando a produtividade de diversas culturas. As queimadas liberam grandes quantidades de gases que contribuem para a destruição da camada de ozônio na atmosfera e, assim, possibilitam que raios ultravioletas atinjam em maior quantidade a Terra e causem efeitos cancerígenos e mutagênicos. Na mesma linha, o fogo não mata as sementes das gramíneas invasoras e estas, por não estarem cobertas pela palha, germinam rapidamente. Para combater essas plantas invasoras, os agricultores utilizam herbicidas em grande escala e em quantidade cada vez maior, motivo pelo qual a cultura da cana é responsável pelo uso de mais de 50% de todos os herbicidas utilizados na agricultura brasileira. O mesmo agrônomo segue dizendo que são comuns as notícias publicadas sobre a destruição dos remanescentes de vegetação nativa por incêndios, com início a partir das queimadas da palha da cana-de-açúcar, sempre com alegações dos representantes do setor sucroalcooleiro afirmando que o fogo fugiu ao controle[1]. Para ele, mesmo que as usinas paguem as multas e indenizações, não há reparação monetária que recupere a situação original de uma reserva florestal, com sua biodiversidade, seus nichos e seu equilíbrio, que foram destruídos para sempre pelo fogo.

Quanto à fauna, as queimadas eliminam os predadores naturais de algumas pragas, como as vespas, provocando o descontrole destas pragas e exigindo assim a utilização cada vez maior de agrotóxicos, provocando maior contaminação ambiental. Não existe um levantamento estatístico científico sobre a quantidade de animais e de todas as espécies que morrem, em média, por hectare de canavial queimado. Os dados existentes são escassos e representam uma fração bastante pequena da realidade, pois são referentes apenas aos animais que são resgatados com vida e levados a um atendimento emergencial. Assim, estão fora deste levantamento todos os insetos e praticamente todas as aves e pequenos roedores. Também não estão computados animais que conseguem fugir, lesionados, que acabam por morrer em outro lugar. Manoel Ferreira conclui que a queimada da palha da cana-de-açúcar, embora muitas vezes feita com autorização do poder público, é uma prática que infringe a lei, pois provoca danos na fauna, que é especialmente protegida por leis federais e estaduais.

As ressonâncias negativas da queimada da palha cana sobre o homem podem ser abordadas em dois momentos: um primeiro e mais restrito, na perspectiva dos trabalhadores cortadores de cana; e um segundo e mais amplo, em seus impactos na qualidade de vida da sociedade em geral. Seguindo as contribuições de Manoel Ferreira, pode-se dizer que as condições ambientais de trabalho do cortador na cana queimada são muito piores que na cana crua, pois a temperatura no canavial queimado, pela cor escura que apresenta, eleva a temperatura ambiente que chega a mais de 45º C. Além disso a fuligem da cana penetra pela pele e pela respiração circulando na corrente sanguínea do trabalhador. Substâncias cancerígenas presentes na fuligem já foram identificadas na urina desses trabalhadores. Mesmo a substância particulada inalada pelos trabalhadores pode estar associada aos casos de mortes por problemas cardíacos. No geral, as comunidades no entorno dos canaviais sofrem também os danos diretos dessa ação. As pessoas ficam doentes, pois respiram as partículas finas e ultrafinas provenientes das queimadas, que penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Esses poluentes passam para a corrente sanguínea, causando complicações em diversos órgãos. Aumentam as despesas públicas com atendimento, para o tratamento dessas moléstias, e a população normalmente tem que arcar com o custo dos medicamentos e outros procedimentos médicos.

Resumidamente, esses são alguns dos demonstrativos antiecológicos perpetrados pela voragem do capital sucroalcooleiro em Alagoas. Cada um deles torna veraz a afirmação de Boff quando diz que “hoje não apenas os pobres gritam. Gritam também a terra, as águas, os ares submetidos a formas de utilização depredadora e destrutiva (...)”. Hoje, sem perder de vista a dimensão da libertação dos pobres e das minorias oprimidas, é quase um imperativo para a teologia articulada a partir do tema da libertação reconhecer a Terra como outro sujeito em situação de cativeiro. Em Alagoas isso começa justamente na relativização dos ídolos que não somente concentram a posse da terra, mas ainda a espoliam sem qualquer sinal de sensibilidade, senso de preocupação com as gerações vindouras, ou com a construção de uma “sociedade sustentável”. Ademais, sua relação predatória com a natureza e sua relação opressora com a sociedade alagoana confirmam o quadro elaborado por Jon Sobrino quanto à definição teológica dos ídolos: o que fazem, fazem-no sem necessidade de justificarem-se a si mesmos diante dos demais seres humanos.

***

Tinha razão Frei Betto quando adjetivava os pretensos biocombustíveis – no nosso caso, o etanol – de “necrocombustíveis”. Está mais do que justificado esse pesado neologismo! Tanto aqui em Alagoas quanto nos outros parques industriais canavieiros do Brasil (como poucas e felizes exceções), a proporção entre aqueles que são beneficiados pela produção de biocombustíveis como o etanol é muitíssima inferior em relação àqueles que são prejudicados pela mesma produção. Entre esses últimos estão os bóias-frias cortadores de cana, trabalhadores do chão de fábrica de usinas canavieiras, moradores de vilas de operários desse ramo, e cidadãos que vivem nas proximidades dos canaviais, seja na cidade ou no campo.

O genocídio da cana, entre os tais, se faz de muitas maneiras. A uns, ela extirpa a vida muito rapidamente. [Saibam vocês que a produtividade média de um trabalhador do corte de cana é de apenas quinze anos.] São incontáveis os casos de homens e mulheres que, submetidos a jornadas extenuantes e a metas que prevêem o corte de dez a quinze toneladas diárias, tombaram em função de colapsos cardíacos súbitos e fulminantes. Mas a outros a cana vai sorvendo a vitalidade num gota à gota. Gente como eu, que, se não bastasse a presença simbólica e psicológica dos usineiros refletidas nas imagens diárias das injustiças sociais de Alagoas, ainda têm que trazer a ação assassina da cana dentro dos pulmões, via fumaça das queimadas dos canaviais.

Oxalá esses fantasmas sejam somente produto químico da fumaça das queimadas. E que o vento leve rapidamente consigo não somente o odor incômodo da fumaça da cana, mas também o aroma da morte e da onipresença dos vampiros que insistem em sobreviver à custa do sangue desse povo.


[1] Para obter exemplos dessa natureza com relação ao caso alagoano cf. FLORES, Alder. Meio Ambiente – Uma contribuição para Alagoas. Maceió: Imagem Gráfica Rápida, 1999, p. 188-189.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

400 ANOS DE AMBIVALÊNCIA: E DAÍ?

Virtudes e vexames históricos entre os Batistas no Brasil e no mundo

Introdução

Eu gostaria de continuar a refletir sobre a vida das comunidades cristãs Batistas, aquecido pela luz de seus 400 anos de história no Ocidente. Mas seria necessário antes prever alguns riscos que não mencionei no artigo anterior. O maior deles é o risco da generalização. Os Batistas têm uma sólida presença em todo o mundo. Portanto, todo cuidado é pouco a fim de não se rotular, como quer que seja, o todo em função da parte. Por exemplo, como batistas brasileiros (já enormemente plurais em tudo!), não podemos projetar nossas idiossincrasias para a totalidade dos batistas no mundo. Não uniformizemos conceitualmente aquilo que é múltiplo na vida!

Portanto, nas considerações a seguir procurarei levar isso em conta. Mas não excluímos a possibilidade de que nossa experiência no Brasil permita alguma generalização para outros cantos. E no fim das contas é isso mesmo que queremos: um quadro mais ou menos geral. Afinal, o aniversário de 400 anos é dos Batistas em todo o mundo.

O que eu desejo nesse artigo é ser menos descritivo que no anterior, e problematizar sobre alguns desafios que se põem diante dos cristãos e das comunidades batistas nesse quadrante histórico. Então minha argumentação se dará sob o seguinte esquema: (I) vou tentar identificar na dinâmica desses grupos, elementos que considero de natureza progressista, isto é, elementos que sejam virtudes históricas que podem servir como proposições para a própria sociedade; e (II) vou tentar identificar também na dinâmica desses grupos elementos que considero de natureza retrógrada e reacionária, isto é, elementos que sejam vexames históricos a serem relativizados junto à própria sociedade. Numa palavra, esse tipo de reflexão poderia ser definido como estudo das ambivalências inerentes a uma [e à toda] formação institucional-religiosa.

Nesse primeiro momento, (1) me focarei no tema da democracia radical como forma de organização das comunidades batistas, identificando nisso um elemento progressista e de poder propositivo para a sociedade. Depois, (2) discursarei sobre o tema da cultura patriarcal, vendo na teologia e na vivência religiosa dos batistas um dos vetores dessa cultura no ocidente, e, portanto, como elemento retrógrado a ser relativizado no diálogo com a sociedade.

A idéia de “democracia radical” como virtude histórica e proposição para a sociedade

Conforme sua proposta organizacional e tradicional, as comunidades Batistas devem ser regidas sob o princípio de uma democracia radical. Isso advém, como tentamos dizer no artigo anterior, de sua compreensão acerca do ser humano como sujeito feito à imagem de Deus, portador de uma dignidade subjetiva e de uma liberdade de consciência inalienável por quem quer que seja – instituição eclesiástica ou estado. Foi por isso que Israel Belo de Azevedo deu à sua tese de doutorado acerca da formação do pensamento dos batistas brasileiros o título de A celebração do indivíduo.

Nisso os Batistas se adiantam em muito a uma democracia representativa como modelo político-governamental consolidado em boa parte das repúblicas ocidentais. O centro do governo e do direcionamento da vida comunitária batista é cada sujeito. Essa democracia radical como forma igualitária do exercício do poder não deve ser relativizada nem mesmo pelos “oficiais do culto” – pastores, pastoras, diáconos e diaconizas. A relação que esses devem manter na dinâmica comunitária é muito mais operacional e instrumental que uma relação hierárquica e de poder sobre os demais. Dito mais claramente, a densidade do poder decisório numa comunidade batista deve ser radicalmente igualitária entre seus membros, incluindo os seus dirigentes.

[É sempre oportuno lembrar que o diferencial do pastor e da pastora batista não é o status do poder, mas o status da arte de cuidar.]

Historicamente, parece ser uma tendência entre os batistas atribuir suas crises internas à fraqueza dessa democracia radical. Centra-se a atenção, nesses momentos de crise, nos abusos que podem advir de tamanha igualdade no exercício do poder. E eles existem mesmo! Esse texto se tornaria extenuante se nos puséssemos a enumerar todas as possibilidades e abusos que advém da partilha radical do poder numa comunidade, qualquer que seja sua natureza. Dessa maneira, há entre nós muito lamento em torno dessa democracia radical. E há inclusive quem a identifique como a raiz fundamental de toda crise entre os batistas brasileiros. Mas eu teria duas objeções ligeiras a essa postura.

Primeiro, eu diria que é sempre bom suspeitar de toda investida que vise a centralização do poder, em qualquer atividade humana. Em conseqüência disso, acho salutar a resistência a todo projeto explícito de concentração do poder, já que suas marcas são inevitavelmente a estratificação das pessoas e a subjugação de uns aos interesses de outros. No nosso caso batista, voltar às formas de regulação comunitária assentadas na centralização de poder é um retrocesso escandaloso e inaceitável. Segundo, as democracias republicanas ocidentais, marcadas por uma interessante variação da democracia que é a representativa, vêm paulatina e eloquentemente nos convencendo de que em toda variação do exercício democrático do poder existem riscos a assumir. E o mais popular deles – tão freqüente no Brasil – é o risco da representatividade tornar-se uma falácia e uma ilusão (em caso de dúvidas, vide nosso Senado!).

Com efeito, vou tentar justificar sucintamente porque adjetivei a democracia radical dos batistas de progressista, e em que ela é uma proposição para a sociedade.

Antes, uma rapidíssima palavra sobre o próprio sentido de progressista aplicado aqui.

Idéias e práticas devem ser consideradas progressistas quando elas propuserem elementos que se mostrem à frente dos estreitamentos de sua época. Quando elas se prestem a aperfeiçoar sempre e mais as formas de convívio humano, e se contraponham àquelas que oprimem e servem aos interesses de uns poucos. Nisso, consideramos a idéia de democracia radical da organização das comunidades batistas (talvez não a prática histórica da mesma) profundamente propositiva para a organização política de nossas sociedades ocidentais.

Como eu já afirmei, essa democracia radical é progressista porque se assenta numa concepção do ser humano profundamente positiva. O que lhe subjaz é uma afirmação das potencialidades que todas as pessoas têm de, vivendo em comunidade, organizarem-se de uma maneira que seja ética para todos. Essa noção do ser humano é profundamente progressista se comparada aos modelos de organização política, jurídica e religiosa, por exemplo, comuns em nossas sociedades. A maioria dessas últimas está fundada numa noção estratificada das pessoas. Há aqueles com credenciais para dirigir e aqueles com credenciais para serem dirigidos. Há aqueles para quem certas leis têm uma validade relativa (políticos, magistrados, portadores de curso superior, por exemplo) e aqueles para quem essas mesmas leis têm validade radical (o cidadão “comum”). Pensem, por exemplo, em todas as inimputabilidades e privilégios políticos e legais de que gozam por lei nossos governantes e magistrados. Elas não se baseiam numa concepção estratificada e meritocrática do ser humano?

A organização democrática radical dos cristãos batistas, por sua vez, funda-se unicamente na convicção de igual status humano de que as pessoas gozam como filhos e filhas de Deus. Não há elementos meritocráticos para estratificar o exercício do poder. É na simples pertença à condição de filhos e filhas de Deus que os batistas ancoram sua organização democrática radical.

Tal democracia radical deve ser adjetivada como progressista também pelo fato de assistirmos hoje (com muita felicidade, por sinal!) a uma reprodução da mesma na esfera pública, ainda que a passos muito lentos. Vocês não conseguem enxergar isso no movimento que a sociedade civil vem fazendo, no sentido de caminhar para formas mais participativas da administração pública? Pois é assim que interpreto, por exemplo, os Conselhos Municipais de Saúde e Educação, os conselhos responsáveis pelo Orçamento Participativo, isto é, todos os Conselhos Gestores que são mecanismos de participação popular nas decisões administrativas dos governos nacionais, estaduais e municipais. Oxalá o transcurso da história reserve para nós a possibilidade de vermos surgir mecanismos cada vez mais comprometidos com a participação popular na administração da vida pública. E oxalá nos eduquemos cada vez mais para essa democracia radical.

Não seria esse também o remédio ideal para a crise institucional dos batistas? Em lugar de retroceder até formas aristocráticas do (ab)uso do poder, não seria o caso de voltarmos a nos educar para a democracia radical em matéria de religião?

A “cultura patriarcal” como vexame histórico e ser relativizado junto à sociedade

No meio dos meus interesses sobre o estudo da ideologia, uma preocupação que me ocupa é a seguinte: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas são instrumentos ideológicos para engendrar nas pessoas uma falsa consciência sobre a vida? Penso que essa é uma pergunta capital para pastores, pastoras, teólogos e teólogas, e não somente para os psicólogos sociais e sociólogos críticos.

Em relação ao nosso tema de agora, a pergunta ganha a seguinte versão: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas criam e consolidam noções opressoras nas relações de gênero?

Embora eu veja a discussão sobre a ordenação de mulheres ao ministério pastoral como um tópico central desse debate, não me circunscrevo a esse tema quando falo das opressões nas relações de gênero. Nos últimos anos, a ordenação feminina entrou na pauta como tema candente desse tópico maior. Somente há 10 anos ordenamos, sob muita tensão e resistência, a nossa primeira pastora batista. Mas existem outros tantos problemas advindos dos discursos e das práticas de gênero entre os batistas que permanecem na obscuridade, e que dificilmente ganharão visibilidade já que estão naturalizados entre nós pela via de uma teologia e de uma catequese tradicionalista e perene. Não obstante a isso, vou me aferrar somente ao tema da ordenação de mulheres ao pastorado, pois ele é suficiente enquanto exemplo de toda uma cultura religiosa ainda atrelada a uma cosmovisão patriarcal.

Uma advertência prévia, todavia, se faz necessária: a luta geral pela “libertação das mulheres” e a luta específica pela inserção das mesmas no ministério pastoral batista não se faz como uma espécie de reprodução das tendências da sociedade pós-moderna. Nos acalorados debates sobre a temática essa é uma acusação muito recorrente. Aí, o “liberalismo inclusivista” em relação à inserção das mulheres no pastorado é interpretado como concessão e como adequação à cultura vigente, como se dependêssemos disso para a credibilidade das pessoas. Para sobreviver e ter espaço na cultura atual, dizem os acusadores, tais “liberais” querem fazer concessões a esta. E como a inclusividade das mulheres no mundo trabalho é um dos valores dessa cultura, sua versão religiosa seria a inserção dessas no ministério pastoral. Eu desejo relativizar tal visão das coisas.

A inserção das mulheres no ministério pastoral entre os batistas, em lugar de ser uma concessão à cultura atual, deve ser vista como produto de uma releitura do próprio Evangelho, sobretudo na maximização existencial deste como temos em Jesus de Nazaré. Deve ser vista como fidelidade ao próprio Evangelho, que em si mesmo é o melhor contraponto à cultura patriarcal de que temos notícia desde o fim da Antiguidade Clássica.

A inserção das mulheres no ministério pastoral batista nos põe diante da interessante questão: Que é ser cristocêntrico? O enfrentamento honesto dessa questão, pelo menos entre os batistas brasileiros, deveria nos conduzir à outra questão: É possível ser cristocêntrico na pregação e não sê-lo nas relações todas que construímos na vida? E mais essa: Estamos de fato sendo cristocêntricos quando não reproduzimos em nossas relações de gênero a atitude de Jesus de Nazaré? Ou: Estamos sendo cristocêntricos quando excluímos as mulheres do exercício do ministério pastoral? Se o fundamento antropológico da democracia radical é o status comum que temos como filhos e filhas de Deus, que fundamento antropológico está por trás da segregação das mulheres ao pastorado? Não é contraditório assumir o status comum de ser humano numa situação (política comunitária) e negligenciá-lo em outra similar (ordenação feminina)? O status comum que gozamos como filhos e filhas de Deus não deveria ser oni-abrangente? O Evangelho responde a essa última questão com um alegre e novo Sim! Na sua linguagem ele afirma: “O Espírito foi derramado igualmente sobre homens e mulheres!” (At 2,18).

Notem que em todo meu esforço para fundamentar uma atitude inclusiva das mulheres no pastorado não me remeti à cultura moderna, nem mesmo ao movimento feminista! E nem o farei! Isto porque não estou bem certo de que temos aí uma libertação das mulheres em sentido radical. Talvez essa libertação esteja circunscrita ao Capital e suas necessidades. Tenho suspeitas de que os novos espaços ocupados pelas mulheres em nossa cultura não sejam somente produtos de uma conquista articulada das mesmas, mas possam ser também fruto das imposições do Capital que impõe novas configurações no mundo trabalho a cada década. Desconfio de que certas pontencialidades próprias do universo feminino – culturais ou geneticamente herdadas, não sei – sejam propícias à certas necessidades do Capital nesse quadrante histórico, e que tamanha inserção das mulheres no mundo trabalho possam estar relacionadas também a isso. Mas são somente desconfianças, e não certezas.

De todo jeito, quer essas mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres sejam fomentados pelas necessidades do Capital, quer pela luta articulada das próprias mulheres, em termos práticos o que temos é uma paridade de funções que deve ser o prelúdio de uma generalização para todas as relações sociais. Homens e mulheres permanecem idiossincraticamente diferentes, mas idênticos nos direitos e nas relações mútuas que estabelecem entre si, sobretudo idênticos quando se trata de gerenciar a vida. Dessa maneira, ainda que a inserção das mesmas seja de fato uma artimanha do Capital, ela serve como sinalização para aquilo que o Evangelho já havia postulado: o status comum que homens e mulheres devem ter na administração do mundo. Então, não pegamos carona na cultura moderna com nossa inclusividade das mulheres. O que fazemos é, por meio de sua sinalização, voltarmos ao Evangelho que com outras motivações já dizia que homens e mulheres são igualmente dignos de acolher o dom da vida. Por isso, não existem dissimetrias de qualquer espécie entre eles. Ninguém é cabeça de ninguém!

Conclusão

Na verdade, ainda não está na hora de concluir. Seguindo o mesmo esquema desse artigo, eu desejaria ainda dizer alguma coisa sobre outro par formado por um elemento progressista e um retrógrado entre os batistas brasileiros. Mas aí esse texto ficaria mais longo do que eu gostaria. Portanto, desejo prosseguir essa reflexão pensando ainda na (3) liberdade e na pluralidade como resistência ao controle institucional e ideológico presente entre os batistas brasileiros como outro elemento progressista de sua mentalidade e de sua prática. Depois, desejo pensar sobre a (4) pretensa neutralidade política como mais um elemento retrógrado de suas convicções ideológicas.

Não obstante, acredito que esse brevíssimo exercício reflexivo deva ter servido para nos provar que a ambivalência é algo próprio das instituições religiosas, e que a melhor atitude entre nós é assumi-la com honestidade, e pensar com a mesma honestidade nos melhores meios de minimizá-la. De outra forma, eu também desejava rechaçar a um certo maniqueísmo comum até a gente bem instruída, para quem as instituições religiosas compõem as “forças malignas da história” na luta contra as “forças benévolas” – entre as quais a própria Ciência desses instruídos. Fazendo assim – isto é, discernindo e trabalhando nossa ambivalência –, ganha a sociedade como um todo, e nós como grupo religioso em específico.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LIBERDADE, PLURALIDADE E FRATERNIDADE


Uma meditação sobre os 400 anos de história dos Batistas


Introdução

O ano de 2009 vem marcado pelo arredondamento de datas importantes da história do Ocidente.

Por exemplo, nesse ano completam-se 220 anos da Revolução Francesa de 1789 como a tentativa de construir uma sociedade alicerçada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em 1899, há 110 anos, Freud concluiria sua A Interpretação dos Sonhos, que daria impulso significativo à Psicanálise, ainda que a obra tenha sido publicada um ano depois. A crise econômica mundial deflagrada com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 completa 80 anos. Assim como o início da Segunda Guerra Mundial em 1939 e suas nefastas conseqüências completa 70 anos. Já se vão exatos 50 anos desde a Revolução Cubana que em 1959 pôs Fidel à frente daquela ilha. Também em 1959, há 50 anos, meu Bahia seria campeão brasileiro pela primeira vez, em cima do Santos de Pelé! Há 40 anos Neil Armstrong daria em solo lunar aquele que, segundo ele, teria sido “um pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade”, mesmo para a descrença de minha avó. Também já são 20 anos desde que em 1989 a queda do Muro de Berlim representou um duro golpe nas aspirações socialistas em todo mundo.

Para os cristãos batistas em todo o mundo 2009 chega também como uma data especial. Conforme nossa historiografia científica mais confiável, a primeira comunidade de cristãos batistas apareceria em 1609, há exatos 400 anos.

As três hipóteses sobre a gênese dos batistas

De fato, existem três hipóteses para explicar a gênese das comunidades batistas na história. A primeira delas mescla a fantasia com o sentimento de “assepsia espiritual” – que é aquela ingênua convicção de que nossa fé está isenta de hibridismos e sincretismos –, e identifica a gênese dos grupos batistas já no Novo Testamento. Ganhou a alcunha de “teoria JJJ” (João-Jordão-Jerusalém) e consiste numa espécie de “sucessão apostólica protestante”, já que supõe uma continuidade ininterrupta e incorrupta entre os primeiros batistas dos templos bíblicos e os batistas atuais. A segunda hipótese liga a gênese das comunidades batistas aos grupos anabatistas contemporâneos à Reforma Protestante do século XVI. Embora existam certas similaridades entre as ideologias desses dois grupos, há também fortes distinções entre ambas, muito embora não se descarte a possibilidade de que os primeiros batistas do século XVII tenham recebido influencia indireta daqueles primeiros.

A terceira hipótese, que é a que adotamos, nos parece ser mais coerente que as demais. Ela identifica a gênese dos grupos batistas no centro dos movimentos religiosos dissidentes da Igreja Anglicana no início do século XVII. Identifica também a gênese dos batistas com mais um dos elementos responsáveis pelo liberalismo inglês, que entre os batistas teve como grande contribuição a luta pela liberdade de consciência e pela liberdade religiosa. A coerência dessa hipótese se assenta num material empírico facilmente disponível a quem deseje: documentos religiosos como declarações doutrinárias, pactos inter-eclesiais, confissões de fé textuais, e etc. Esses são materiais empíricos importantes à investigação histórica, e que faltam nas duas primeiras hipóteses sobre a gênese dos batistas. Está claro que a credibilidade que dou à terceira hipótese se deve à cientificidade que lhe subjaz. Mas isso é muito pessoal.

Algumas peculiaridades Batistas em destaque

Os batistas são um grupo cristão com certas peculiaridades que cabe destacar.

Por exemplo, carecemos de um “patriarca” ou de uma “matriarca” que possam ser pontualmente discernidos na gênese histórica de nossa fé. Os luteranos o têm em Martin Lutero. Os presbiterianos em João Calvino. Os menonitas em Meno Simons. Os metodistas em John Wesley. Para a Assembléia de Deus, são os suecos Gunar Vingren e Daniel Berg. Para a Igreja Universal, Edir Macedo. Nesse sentido, os batistas são órfãos. É verdade que entre os que trabalham com a terceira hipótese acerca da gênese dos batistas, identificam-se nos ingleses John Smith e Thomas Helwys os primeiros pastores desse grupo religioso. Mas isso nunca foi suficiente para que esses dois líderes batistas fossem reconhecidos como “patriarcas históricos”. A prova cabal disso é o fato de que John Smith e Thomas Helwys permaneçam profundamente desconhecidos para a grande maioria dos cristãos batistas de hoje.

Outra interessante peculiaridade dos batistas é o pluralismo teológico presente já na sua gênese. Já as primeiras comunidades batistas na Inglaterra do século XVII surgiram ao redor de duas grandes tendências teologicamente distintas: os batistas gerais e os batistas particulares. Os primeiros – os batistas gerais – mais identificados com uma tradição arminiana, isto é, com uma concepção mais otimista acerca da natureza humana e com uma concepção mais abrangente acerca da salvação em Jesus Cristo, no qual todos os homens são eleitos e devem eles mesmos se posicionar diante disso. Os segundos – os batistas particulares – mais identificados com uma tradição calvinista, isto é, com uma antropologia mais pessimista alimentada pela idéia de “depravação total” da natureza humana, e com uma noção mais exclusivista de salvação, circunscrita somente àqueles a quem Deus elegeu em particular.

Muito embora essas designações tenham caído em total desuso (batistas gerais e particulares), é possível dizer que ainda hoje os batistas são caracterizados por um pluralismo teológico dificilmente encontrado em outras denominações cristãs. É nesse sentido que é melhor falar sempre em teologias batistas, e nunca numa teologia batista. Na contramão de uma postura altamente reacionária que vê no pluralismo teológico um defeito e uma fraqueza, enxergamos aí um elemento idiossincrático positivo, próprio de nossa identidade e talvez de nossa originalidade.

Esse pluralismo teológico deve ser visto como produto daquilo que constituiu a própria luta histórica dos primeiros batistas ingleses: a luta pela liberdade. E gostaríamos de ratificar que o pluralismo não é o “filho bastardo da liberdade”, mas é seu filho mais legítimo! Isso pode ser visualizado também nas próprias formas litúrgicas das comunidades batistas de ontem e de hoje. Quando o historiador batista estadunidense Walter B. Shurden dizia que “não existem duas igrejas batistas iguais”, isso deveria ser entendido radicalmente: teológica, doutrinária e liturgicamente. E não é na bibliografia religiosa que se comprova essa tese, mas na própria vida das comunidades batistas. Basta fazer o teste de visitar algumas delas e provar se isso procede ou não.

O mesmo Walter B. Shurden sintetizou a luta histórica dos batistas pela liberdade em quatro grandes eixos didáticos, que ele chamou de:

1) Liberdade da Bíblia (liberdade pessoal para interpretar Bíblia);

2) Liberdade da Igreja (liberdade para a própria comunidade religiosa organizar a si mesma);

3) Liberdade Individual (liberdade de consciência pessoal na escolha de todo tipo de ideologia, seja secular seja religiosa); e

4) Liberdade Religiosa (liberdade e equidade nos direitos de todo tipo de confissão religiosa a despeito do poder do estado).

Shurden adjetivava essas liberdades de “frágeis”, uma vez que entre os próprios batistas observam-se duas tendências negativas em face delas:

1) Os próprios batistas se retraem ante o fluxo de tamanha liberdade, uma vez que o seu produto natural é sempre um pluralismo e uma diversidade inédita no campo religioso. Nesse sentido, muitos atos inquisitórios que são realizados em nome da tradição batista, na verdade se movem contra o que há de mais idiossincrático para essa mesma tradição, que é a liberdade pessoal e eclesial;

2) Há casos em que a liberdade religiosa, conquistada à custa de muita luta pelos primeiros batistas enquanto grupo cristão marginal, é cerceada aos grupos religiosos que hoje ocupam a marginalidade. É o uso da própria liberdade para castrar a liberdade alheia.

Os batistas e a sociedade brasileira

No Brasil, os batistas têm já uma história de 127 anos. Seus primeiros missionários chegariam ao Brasil em 1882, no epicentro do missionarismo protestante estadunidense da segunda metade do século XIX. Se, por um lado, a nossa leitura desses fatos não deve perder de vista as motivações especificamente religiosas, por outro lado, nunca deveríamos nos abstrair de levar em consideração também outras aspirações desse missionarismo. Assim nossa leitura fica mais abrangente, mais integral.

De um lado, temos nesse missionarismo a continuidade do resgate da tarefa de evangelização mundial ressuscitado na Europa por Willian Carey. Por outro lado, temos nesse missionarismo uma espécie de vetor dos valores liberais-modernizantes consagrados na Europa e nos Estados Unidos, e ainda ausentes na cultura brasileira, à época marcada pelas desgastadas relações coloniais na política e na religião. Resumindo, esse missionarismo estadunidense que contaria com os batistas como uma de suas grandes representações, conseguiu amalgamar num único projeto a transformação religiosa do Brasil com sua transformação cultural – política e social. Não é por acaso que o anticatolicismo tenha sido um dos valores mais presentes para aqueles primeiros batistas brasileiros, uma vez que o atraso civilizacional do Brasil era identificado com a influência e com a hegemonia da Igreja Católica – leitura vigente ainda em nossos dias.

Anticatolicismo na teologia e proselitismo na missiologia foram os componentes do grande crescimento numérico dos batistas brasileiros até um pouco depois da primeira metade do século XX. A segunda metade do século XX trouxe aos batistas brasileiros algumas situações novas que ainda carecem de estudos científicos consistentes, tanto pelos seus teólogos quanto pelos sociólogos ou cientistas da religião. E eu vou caminhando para o fim desse artigo pontuando ligeiramente alguns desses elementos.

O primeiro deles diz respeito às respostas dos cristãos batistas em face do clima de inquietações da sociedade civil brasileira em relação aos desastres do capitalismo dependente e do “fantasma comunista” que rondava os países latino-americanos a partir da década de 1960. Permanece pouco conhecido entre os batistas brasileiros, sobretudo entre suas lideranças eclesiais, o Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963, que se constitui como excelente testemunho textual das preocupações de uma ala de pastores batistas quanto à transformação das condições sociais do nosso país. Apesar disso, faltam estudos mais precisos sobre a postura dos batistas brasileiros diante da ideologia de “segurança nacional” levada a cabo pela Ditadura Militar de 1964-1985. Há muita desconfiança de que o elemento estadunidense na matriz religiosa dos batistas brasileiros tenha levado a uma identificação com uma postura anticomunista e de adesão à política do Governo Militar. Mas faltam-nos estudos científicos que confirmem ou contradigam essas suspeitas.

Outro elemento que merece destaque aqui diz respeito aos movimentos religiosos carismáticos que campearam tanto no protestantismo histórico quanto no catolicismo a partir da década de 1960. É interessante o fato de que os carismatismos religiosos tenham encontrado lugar nesses dois ambientes concomitantemente. Para os batistas brasileiros, os movimentos carismáticos representaram uma fragmentação ainda maior em termos denominacionais, e uma relativização de uma visão tradicionalista arraigada entre essas igrejas. Em 1965, entre os batistas brasileiros aconteceria a maior cisão interna dessas igrejas, com o aparecimento da Convenção Batista Nacional (CBN) impulsionada pelos ventos carismáticos. No Brasil, a inserção da chamada Teologia da Prosperidade se daria na confluência junto às tendências carismáticas. O neopentecostalismo, por exemplo, é ao mesmo tempo um movimento carismático (no sentido técnico que estamos lhe atribuindo aqui).

Ao que tudo indica, entre os batistas brasileiros, em especial, os efeitos de todas essas alterações religiosas nunca foram bem administrados. No lugar de assumir o pluralismo como efeito normal de sua liberdade, tais igrejas o representaram como uma ameaça à sua própria identidade. Por tabela, muitas dessas comunidades, numa atitude autodefesa, refugiaram-se num tradicionalismo profundamente prejudicial ao seu próprio crescimento numérico. E a grande contradição advinda disso é a seguinte: mesmo gozando de grande credibilidade perante a sociedade brasileira como um todo, os batistas têm tido um crescimento numérico muito menor em relação àqueles grupos cuja imagem é supostamente menos credenciada perante a mesma sociedade. Em complemento a isso devemos destacar que os batistas brasileiros estão os grupos cristãos cuja atividade missionária está mais em evidência. As grandes articulações coletivas dos batistas brasileiros – em âmbito, mundial, nacional e estadual – são todas de natureza missionária. No entanto, é claro o desnível de crescimento numérico em relação aos grupos cuja ocupação missionária não é tão evidente. Não é esta uma contradição interessante e digna de uma boa investigação?

Conclusão

Uma das perguntas que nos surgem nesses 400 anos de presença batista na história mundial seria a seguinte: existe um legado especial desses grupos religiosos à história do Ocidente? Pessoalmente, eu identificaria esse legado na construção de um sujeito portador de liberdade. É bem verdade que a liberdade de consciência, enquanto um dos valores mais caros ao liberalismo moderno, tem sido identificada como um dos elementos na base do individualismo radical de nossos dias. Mas não podemos fazer uma ligação tão direta assim – entre o liberalismo moderno e individualismo atual – sem passar por uma discussão atenta sobre o neoliberalismo e as condições sócio-político-econômicas que lhe possibilitaram. Por outro lado, quem entre nós estaria disposto a abdicar de sua liberdade de consciência em nome da seguridade e do controle ideológico das igrejas e do estado?

Os batistas têm, portanto, direta participação na construção do sujeito ocidental, tido por digno em sua pessoalidade – teologicamente diríamos feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27) –, portador de direitos fundamentais, responsável por sua própria conduta, que emerge na modernidade. Repito: se essa concepção descambou hoje num individualismo indesejado, nem por isso desejamos retroceder ao nível de uma impessoalidade tutelada pelas igrejas ou pelo estado. Devem existir outras vias melhores.

A liberdade individual necessita ter como único produto uma atitude individualista? O pluralismo ideológico precisa ser sempre visto como corrupção da liberdade? E ninguém pense que essas questões estão referidas somente à vida das comunidades batistas. Elas são questões que dizem respeito ao todo de nossas sociedades, e que são fomentas por essa ocasião especial dos 400 anos de história dos batistas. Em outras palavras, essa ocasião nos fustiga a pensar não somente no futuro das comunidades de cristãos batistas. Elas nos fazem refletir nas alternativas que temos enquanto sociedade. Há alguma vivência da liberdade que não precisa desembocar no individualismo? Há algum tipo de vivência da liberdade que consiga conjugar o pluralismo ideológico e o comunitarismo fraternal? Ou já escambamos aqui para o utopismo?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

MUITA FORÇA CRISTINA!


Um modelo da opção preferencial dos pobres

Na mesma semana em que Cristina me visitou a fim de oferecer-me sua criança – a quem não pude adotar em função de um conjunto enorme de fatores –, um facho de esperança parecia iluminar timidamente essa história. Um dia após a visita de Cristina eu receberia um telefonema de alguém que havia lido e repassado via lista de emails o texto Cristina é invisível. De fato, nenhum outro dos meus textos proporcionou tanto retorno quanto este. Porém, o melhor desses retornos foi aquele em que um casal, até então desconhecido, se dizia desejoso de adotar a criança de Cristina.

Pela mediação daquela primeira pessoa que havia lido e repassado o Cristina é invisível, eu pude conhecer esse casal. Nós conversamos muito. Ouvi atentamente a história deles e a fundamentação emocional que embasava o desejo de adoção de uma menina. Tratava-se de “razões do coração” que não competem um detalhamento aqui. Mas posso lhes afirmar que a mais remota possibilidade de adoção de uma menina era suficiente para fazer brilhar os rostos daquele homem e daquela mulher.

Marcamos uma visita à Cristina, que em sua ida à minha casa havia deixado o seu endereço comigo. No percurso entre Maceió e a cidade de Cristina eu ia escutando de Marco Antonio – que é o pseudônimo que estou dando ao pretendente à adoção da criança de Cristina – mais detalhamentos de sua história junto a sua esposa. A fala dele estava aquecida por uma ansiedade parecida com aquela que as crianças mostram antes de receber os presentes no Natal. Já na cidade de Cristina, Marco Antonio chegou a cogitar a possibilidade de que ela tivesse voltado atrás em sua decisão de doar a filha. Afinal, já se havia passado vinte dias desde que Cristina me visitara. E de fato, esse é um lapso de tempo suficiente para mudanças significativas quando se trata de dilemas dessa natureza.

Antes mesmo que eu chegasse ao seu endereço, avistei Cristina no meio da rua. Fui ao seu encontro enquanto Marco Antonio preferiu não se dar a conhecer por ela, o que é sensato em todos os processos de adoção. A preservação da identidade dos casais que adotam em relação às famílias que doam é imprescindível, a fim de evitar futuros transtornos oriundos de arrependimentos e etc.

Cristina, ainda gestante, havia mesmo voltado atrás em sua decisão de doar sua menina. “Não quero mais dar a minha filha pastor, pois isso é um pecado de morte”, Cristina me dizia ali, no meio da rua mesmo. Num primeiro momento, a assertiva “pois isso é um pecado de morte” soou para mim como uma simples força de expressão. Aquilo havia me passado como todos esses ditos religiosos que internalizamos e dizemos com muita espontaneidade, como “ave maria”, “pelo amor de deus” e tantos outros... No povo pobre esses ditos são ainda mais freqüentes e variados. Portanto, não me causou nenhuma suspeita.

Mas o “pois isso é um pecado de morte” de Cristina, na verdade, era um fragmento confessional do que lhe havia ocorrido naquele interregno de vinte dias entre sua visita à minha casa e o meu encontro com ela em sua cidade. O “pois isso é um pecado de morte” de Cristina confirmava tristemente as suspeitas de Marco Antonio. De fato, naquele interregno algo havia ocorrido.

Na contramão do meu conselho de vinte dias atrás, Cristina não havia procurado o Conselho Tutelar de sua cidade. Ela procurara uma igreja evangélica pentecostal. Ali, diante dela no meio da rua, e num espaço mínimo de tempo, eu me dava conta do tamanho de minha ingenuidade. Entre a burocracia fria e vagarosa de nossas instituições públicas e as promessas quentes e imediatistas do discurso pentecostal, como alguém na situação de Cristina faria opção pelas primeiras? E ela me dizia que na igreja pentecostal havia sido convencida de que doar sua criança seria um pecado mortal. “O pessoal da igreja está me ajudando; estou conseguindo um trabalho numa casa de família e voltei para o meu companheiro”, ela me relatava. “Minha filha nasce ainda esse mês, e eu não posso dar não, pois isso é um pecado de morte”, ela completava.

Sem dúvida alguma, essa bifurcação – a frieza e vagarosidade burocrática de nossas instituições públicas e o fervor imediatista do discurso pentecostal e neopentecostal – não pode nos escapar se quisermos compreender menos unilateralmente o sucesso desses últimos grupos religiosos. Aqui também está o “calcanhar de Aquiles” dos movimentos religiosos ditos progressistas, entre eles a própria Teologia da Libertação. Entre esses movimentos, quer católicos ou protestantes, uma das diretrizes fundamentais é a de que os pobres e oprimidos devem se tornar “sujeitos de sua própria história” e “autores de sua própria libertação”. Mas o que fazemos com as opções de libertação que os próprios pobres e oprimidos estão fazendo sem a nossa assessoria? Ou os tais só serão “sujeitos e autores de sua própria libertação” se adotarem o nosso projeto libertário previamente formulado?

“Mas Cristina, qual é o pecado mais mortal: doar sua criança para a adoção ou criá-la sem as mínimas condições como você mesma havia me dito há vinte dias?”, eu lhe retrucava. Cristina, por seu turno, insistia em sua decisão, que obviamente deveria ser respeitada. E foi. Primeiro por mim mesmo ali, e posteriormente por Marco Antonio. Ela insistia no suporte comunitário que começara a receber do seu novo grupo religioso como condição factível de conceber e criar sua filha.

E eu desejo encerrar essas narrativas e reflexões sobre a saga de Cristina com uma citação de Durkheim. Isso para continuar sendo fiel a uma tradição protestante de racionalização das coisas, e de um certo flerte indecente com o discurso e a mentalidade moderna. Se Cristina foi fiel à postura do povo pobre em optar pelas promessas e o imediatismo do discurso pentecostal – e nisso ela está acompanhada de milhões de outros brasileiros e brasileiras –, por que eu não deveria continuar fiel à minha tradição protestante no modo racionalizante com que vê o mundo? Portanto, com a palavra Durkheim. A interpretação dele compete a cada um (o que é outro dogma protestante!):

“Os crentes, isto é, os homens [e mulheres] que vivendo a vida religiosa têm a sensação direta do que a constitui [...] sentem que a verdadeira função da religião não é fazer pensar, enriquecendo o nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir, nos ajudar a viver. O fiel que comungou com o seu deus não é apenas um homem [e uma mulher] que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é um homem [e uma mulher] que pode mais. Ele [e ela] sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado [e elevada] acima das misérias humanas, porque está elevado [e elevada] acima da sua condição de homem [e de mulher]; acredita-se salvo do mal, aliás, sob qualquer forma que se conceba o mal” (DURKHEIM, Émille. Formas elementares de vida religiosa).

Muita força Cristina!