segunda-feira, 20 de setembro de 2010

E AGORA, O QUE FAREMOS NÓS? [1]

Religião, secularização e sociedade no Brasil
O que me ocupa incessantemente é a questão: o que é o cristianismo ou ainda quem é de fato Cristo para nós hoje. Foi-se o tempo em que se podia dizer isso para as pessoas por meio de palavras – sejam teológicas ou piedosas; passou igualmente o tempo da interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da religião de maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas. Também aquelas que se dizem “religiosas” de modo algum praticam o que dizem; portanto, é provável que com o termo “religioso” estejam referindo-se a algo bem diferente
(Dietrich Bonhoeffer, in Resistência e submissão)
Há pouquíssimo tempo atrás todos nós – teólogos(as), sociólogos(as) e cientistas da religião – concordávamos com o fato de que, com a Modernidade, a Religião havia sido exilada para a dimensão privada da vida das pessoas. Na América Latina esse processo teria um século de atraso em relação à Europa. Mas desde meados e fins do século XIX, um movimento de laicização dos estados encontrou grande adesão nesse canto do mundo. No Brasil, particularmente, o estado tornou-se laico em 1890. É verdade que tal laicização, até então, tem sido muito mais documental que experiencial. Exemplo disso é a permanência de símbolos religiosos – majoritariamente católicos – em espaços de repartições públicas, além das dezenas de feriados religiosos a cada ano.
Aqui entre nós, os Cristãos Batistas em particular estiveram muito implicados nas lutas por um estado livre da tutela religiosa. Junto aos maçons, judeus e protestantes de outras denominações, celebramos 1890 como uma conquista histórica memorável. Não sem razão! Afinal, numa sociedade e num estado tutelados há quatro séculos pela Igreja Católica, o preconceito e até a perseguição física colocavam os Batistas no rol daqueles grupos marginalizados. No nordeste do Brasil existem centenas de templos batistas que foram queimados por campanhas católicas. Milhares de cristãos protestantes, àquela época, não tinham o reconhecimento de sua condição matrimonial, já que casamentos não-católicos não eram reconhecidos pelo estado. Também estes mesmos protestantes apelaram por muito tempo para formas alternativas de sepultamento de seus mortos, já que os únicos cemitérios existentes estavam sob gerência das irmandades católicas.
Hoje, respirando ares pós-modernos, dois fenômenos integrados estão aí claros aos olhos de quem quiser ver:
(1) O estado laico se consolidou não a despeito da Religião, mas apesar dela. Uma das fundamentações para a laicização dos estados modernos havia sido científica. Ela estava relacionada à crença, àquela época, de que a Religião, enquanto fenômeno cultural, perderia seu vigor e sua influência sobre as massas, tudo por conta do progresso da ciência. Acerca disso vejam Comte, Freud, Marx, Russell, e muita gente mais;
(2) A Religião Cristã na pós-modernidade não é a mesma de outros tempos. Ela não somente volta à cena com sua força persuasiva e produtora de conduta social. Ela agora reclama seu papel no que diz respeito à construção da res-publica – da coisa pública. Banida para a dimensão privada da vida pela Modernidade, ela agora exige um espaço que gozou abundantemente em outros tempos, dos quais o mais emblemático fora a Idade Média. Acerca disso há dois autores interessantes: David Tracy e José Casanova.
Parece-me que os Cristãos Protestantes Brasileiros estão muito interessados nessa discussão. Os últimos debates sobre a possibilidade da “legalização da iniqüidade”, via PT, têm mostrado quanta gente nesses círculos está seriamente interessada em política. Mais do que isso: obedecendo ao ponto (2) acima, essas discussões mostram o quanto essa comunidade está interessada em construir um estado onde a influência da (sua) Religião seja factível.
Tentando acrescentar algum item a essa discussão, penso ser pertinente trazer à mesa alguns elementos históricos que não podem ser desprezados:
(1) Nós, Protestantes Brasileiros, e nós, Cristãos Batistas em particular, ajudamos a construir o estado laico no Brasil. Quando éramos minoria perseguida e esmagada pelo totalitarismo católico, nós fomos um dos bastiões para que um projeto liberal-modernizante se implantasse no Brasil. Esse projeto liberal-modenizante, que copiávamos de nossas matrizes européia e norte-americana, tinha os seguintes motes: a) no aspecto econômico, reforçava a modernização e industrialização contra as velhas oligarquias senhoras da terra; b) no aspecto político, levantava a bandeira da democracia representativa; c) no aspecto cultural, disseminava a escola para todos e a promoção do indivíduo e de sua liberdade. Conseguimos, com o sacrifício literal de muitos crentes, fazer com que nossa sociedade desse esses passos que, àquela época, considerávamos um avanço civilizatório.
(2) Naquela época, a Igreja Católica havia sido eleita como a grande antítese para os protestantes. E não somente em função das discrepâncias doutrinárias. Além desse inquestionável elemento, havia uma leitura político-econômica feita pelos protestantes que identificavam o atraso do Brasil com a influência do catolicismo. Era a essa época que Max Weber (em outro contexto sócio-geográfico, obviamente) escreveriaA ética protestante e o espírito do capitalismo. Weber mostraria como o ethos protestante ligado à ascese intramundana, à disciplina, à poupança, e a uma teologia que identificava os eleitos de Deus com o sucesso nos empreendimentos humanos, tornariam o Protestantismo numa das alavancas para o progresso do Capitalismo. O Catolicismo, por sua vez, com sua ética frouxa no que tange à disciplina social, produziria cidadãos pouco produtivos, e pouco afeitos ao “desenvolvimento” promovido pelo Capital. O “atraso brasileiro” estava assim explicado em função de sua matriz religiosa principal: o Catolicismo.
(3) A luta pela liberdade religiosa empreendida pelos nossos primeiros protestantes, sobretudo pelos Batistas, tornou-se uma luta ampla, que beneficiaria a outros sujeitos além dos protestantes. Maçons, judeus, candomblecistas, ateus, agnósticos, materialistas, todos eles sairiam ganhando. Eles não seriam meros beneficiados, mas em comunhão de pensamento com os Batistas, também entre esses os sacrifícios foram muitos. Para quem servir um exemplo alagoano, sugiro uma investigação acerca do Quebra de Xangô em 1912. Um dos maiores formadores de opinião entre os batistas brasileiros, Edgar Young Mullins, chegou a escrever o seguinte a esse respeito: “Os batistas crêem na liberdade religiosa para si próprios. Mas eles crêem também na igualdade de todos os homens. Para eles, isso não é um direito; é uma paixão. Embora não tenhamos nenhuma simpatia pelo ateísmo, agnosticismo ou materialismo, nós defendemos a liberdade do ateu, do agnóstico e do materialista em suas convicções religiosas ou não-religiosas”. Em nome da liberdade de consciência, algo que os Batistas, em todo mundo, sempre consideraram como de importância pivotal, nossos primeiros irmãos e irmãs pausaram por um momento suas diferenças em relação a grupos francamente distintos de seus pontos de vista fundamentais.
Tudo isso nos ajuda, inclusive, a dirimir algumas leituras parciais sobre nosso Protestantismo Brasileiro. Quase sempre reclamamos o fato de que este tem sido marcado historicamente pela letargia social. Quase sempre cobramos deste uma postura mais engajada quanto à transformação da sociedade brasileira. Tudo correto! Mas essa contribuição histórica existe, e está aí sucintamente descrita. Se temos hoje uma sociedade onde a liberdade de expressão é um direito garantido, aos Protestantes Brasileiros deve-se uma boa parcela dessa conquista. Muito sangue de crente simples, muito templo evangélico no interior desse país precisou ser sacrificado para tal.
Resumindo a coisa toda, eu diria que quando éramos minoria perseguida, a laicização do estado era uma benção! Quando éramos minoria silenciada e esmagada, a secularização da sociedade era uma benção! Quando éramos os esquisitos, os diferentes, os excluídos e marginalizados, defendíamos um estado isento da influência religiosa!
E agora que já não somos tão esquisitos assim, que faremos com os esquisitos e os diferentes? E agora que já somos quase 40% dos 190 milhões de brasileiros, que faremos com os diferentes e minoritários? E agora que somos a bola da vez em matéria de religião, que faremos com os atuais pagãos e hereges? E agora que nos fazemos representar na arena político-partidária, que faremos daqueles que outrora, junto a nós, engrossaram as fileiras dos “ratos da sociedade”? E agora que estamos pacificados em nossos templos de domingo a domingo, que faremos com uma sociedade que deseja tocar sua vida para além de nossa influência religiosa?
A gente segue conversando!

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - PRONUNCIAMENTO DA ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL


PRONUNCIAMENTO DA ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL
ELEIÇÕES 2010
A Aliança de Batistas do Brasil vem por meio deste documento reafirmar o compromisso histórico dos batistas, em todo o mundo, com a liberdade de consciência em matéria de religião, política e cidadania. A paixão pela liberdade faz com que, como batistas, sejamos um povo marcado pela pluralidade teológica, eclesiológica e ideológica, sem prejuízo de nossa identidade. Dessa forma, ninguém pode se sentir autorizado a falar como “a voz batista”, a menos que isso lhe seja facultado pelos meios burocráticos e democráticos de nossa engrenagem denominacional.
Em nome da liberdade e da pluralidade batistas, portanto, a Aliança de Batistas do Brasil torna pública sua repulsa a toda estratégia político-religiosa de “demonização do Partido dos Trabalhadores do Brasil” (doravante PT). Nesse sentido, a intenção do presente documento é deixar claro à sociedade brasileira duas coisas: (1) mostrar que tais discursos de demonização do PT não representam o que se poderia conceber como o pensamento dos batistas brasileiros, mas somente um posicionamento muito pontual e situado; (2) e tornar notório que, como batistas brasileiros, as idéias aqui defendidas são tão batistas quanto as que estão sendo relativizadas.
1. A Aliança de Batistas do Brasil é uma entidade ecumênica e dedicada, entre outras tarefas, ao diálogo constante com irmãos e irmãs de outras tradições cristãs e religiosas. Compreendemos que tal posicionamento não fere nossa identidade. Do contrário, reafirma-a enquanto membro do Corpo de Cristo, misteriosamente Uno e Diverso. Assim, consideramos vergonhoso que pastores e igrejas batistas histórica e tradicionalmente anticatólicos, além de serem caracterizados por práticas proselitistas frente a irmãos e irmãs de outras tradições religiosas de nosso país, professem no presente momento a participação em coalizões religiosas de composição profundamente suspeita do ponto de vista moral, cujos fins dizem respeito ao destino político do Brasil. Vigoraria aí o princípio apontado por Rubem Alves (1987, p. 27-28) de que “em tempos difíceis os inimigos fazem as pazes”? Com o exposto, desejamos fazer notória a separação entre os interesses ideológicos de tais coalizões e os valores radicados no Evangelho. Por não representarem a prática cotidiana de grande fração de pastores e igrejas batistas brasileiras, tais coalizões deixam claro sua intenção e seu fundo ideológico, porém, bem pouco evangélico. Logrado o êxito buscado, as igrejas e os pastores batistas comprometidos com as coalizões “antipetistas” dariam continuidade à prática ecumênica e ao diálogo fraterno com a Igreja Católica, assim como com as demais denominações evangélicas e tradições religiosas brasileiras? Ou logrado o êxito perseguido, tais igrejas e pastores retornariam à postura de gueto e proselitismo que lhes marcam histórica e tradicionalmente?
2. Como entidade preocupada e atuante em face da injustiça social que campeia em nosso país desde seu “descobrimento”, a Aliança de Batistas do Brasil sente-se na obrigação de contradizer o discurso que atribui ao PT a emergente “legalização da iniqüidade”. Consideramos muito estranho que discursos como esse tenham aparecido somente agora, 30 anos depois de posicionamentos silenciosos e marcados por uma profunda e vergonhosa omissão diante da opressão e da violência a liberdades civis, sobretudo durante a ditadura militar (1964-1985). Estranhamos ainda que tais discursos se irmanem com grupos e figuras do universo político-evangélico maculadas pelo dinheiro na cueca em Brasília, além da fatídica oração ao “Senhor” (Mamon?). Estranhamos ainda que tais discursos não denunciem a fome, o acúmulo de riqueza e de terras no Brasil (cf. Isaías 5,8), a pedofilia no meio católico e entre pastores protestantes, como iniquidades há tempos institucionalizadas entre nós. Estranhamos ainda que tais discursos somente agora notem a possibilidade da legalização da iniquidade nas instituições governamentais, e faça vistas grossas para a fatídica política neoliberal de FHC, além da compra do congresso para aprovar a reeleição. Estranhamos que tais discursos não considerem nossos códigos penal e tributário como iniqüidades institucionalizadas. Os exemplos de como a iniqüidade está radicalmente institucionalizada entre nós são tantos que seriam extenuantes. Certamente para quem se domesticou a ver nas injustiças sociais de nosso Brasil um fato “natural”, ou mesmo como a “vontade de Deus”, nada do mencionado antes parece ser iníquo. Infelizmente!
3. Como entidade identificada com o rigor da crítica e da autocrítica, desejamos expressar nosso descontentamento com a manipulação de imagens e de informações retalhadas, organizadas como apelo emocional e ideológico que mais falseia a realidade do que a apreende ou a esclarece. Textos, vídeos, e outros recursos de comunicação de massa, devem ser criteriosamente avaliados. Os discursos difamatórios tais como os que se dirigem agora contra o PT quase sempre se caracterizam por exemplos isolados recortados da realidade. Quase sempre, tais exemplos não são representativos da totalidade dos grupos e das ideologias envolvidas. Dito de forma simples: uma das armas prediletas da difamação é a manipulação, que se dá quase sempre pelo uso de falas e declarações retiradas do contexto maior de onde foram emitidas. Em lugar de estratégias como essas, que consideramos como atentados à ética e à inteligência das pessoas, gostaríamos de instigar aos pastores, igrejas, demais grupos eclesiásticos e civis, o debate franco e aberto, marcado pelo respeito e pela honestidade, mesmo que resultem em divergências de pensamento entre os participantes.
4. A Aliança de Batistas de Brasil é uma entidade identificada com a promoção e a defesa da vida para toda a sociedade humana e para o planeta. Mas consideramos também que é um perigo quando o discurso de defesa da vida toma carona em rancores de ordem política e ideológica. Consideramos, além disso, como uma conquista inegociável a laicidade de nosso estado. Por isso, desconfiamos de todo discurso e de todo projeto que visa (re)unir certas visões religiosas com as leis que regem nossa sociedade. A laicidade do estado, enquanto conquista histórica, deve permanecer como meio de evitar que certas influências religiosas usurpem o privilégio perante o estado, e promova assim a segregação de confissões religiosas diferentes. É mister recordar uma afirmação de um dos grandes referenciais teológicos entre os batistas brasileiros, atualmente esquecido: “Os batistas crêem na liberdade religiosa para si próprios. Mas eles crêem também na igualdade de todos os homens. Para eles, isso não é um direito; é uma paixão. Embora não tenhamos nenhuma simpatia pelo ateísmo, agnosticismo ou materialismo, nós defendemos a liberdade do ateu, do agnóstico e do materialista em suas convicções religiosas ou não-religiosas” (E. E. Mullins, citado por W. Shurden). Nossa posição está assentada na convicção de que o Evangelho, numa dada sociedade, não deve se garantir por meio das leis, mas por meio da influência da vida nova em Jesus Cristo. Não reza a maior parte das Histórias Eclesiásticas a convicção de que a derrota do Cristianismo consistiu justamente em seu irmanamento com o Império Romano? Impor a influência de nossa fé por meio das leis do estado não é afirmar a fraqueza e a insuficiência do Evangelho como “poder de Deus para a salvação de todo o que crê”? No mais, em regimes democráticos como o estado brasileiro, existem mecanismos de participação política e popular cuja finalidade é a construção de uma estrutura governamental cada vez mais participativa. Foi-se o tempo em que nossa participação política estava confinada à representatividade daqueles em quem votamos.
5. A Aliança de Batistas do Brasil se posiciona contra a demonização do PT, levando em consideração também que tal processo nega o legado histórico do Partido dos Trabalhadores na construção de um projeto político nascido nas bases populares e identificado com a inclusão e a justiça social. Os que afirmam o nascimento de um “império da iniquidade”, com uma possível vitória do PT nas atuais eleições, “esquecem” o fundamental papel deste partido em projetos que trouxeram mais justiça para a nação brasileira, como, por exemplo: na reorganização dos movimentos trabalhistas, ainda no período da ditadura militar, visando torná-los independentes da tutela do estado; na implantação e fortalecimento domovimento agrário-ecológico dos seringueiros do Acre pela instalação de reservas extrativistas na Amazônia, dirigido, na década de 1980, porChico Mendes; nas ações em favor da democracia, lutando contra a ditadura militar e utilizando, em sua própria organização, métodos democráticos, rompendo com o velho “peleguismo” e com a burocracia sindical dos tempos varguistas; nas propostas e lutas em favor da reforma agrária ao lado de movimentos de trabalhadores rurais, sobretudo o MST; no apoio às lutas pelos direitos das crianças, adolescentes, jovens, mulheres, homossexuais, negros e indígenas; e na elaboração de estratégias, posteriormente transformadas em programas, de combate à fome e à miséria. Atualmente, na reta final do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, vemos que muita coisa desse projeto político nascido nas bases populares foi aplicado. O governo Lula caminha para seu encerramento apresentando um histórico de significativas mudanças no Brasil: diminuição do índice de desemprego, ampliação dos investimentos e oportunidades para a agricultura familiar, aumento do salário mínimo, liquidação das dívidas com o FMI, fim do ciclo de privatização de empresas estatais, redução da pobreza e miséria, melhor distribuição de renda, maior acesso à alimentação e à educação, diminuição do trabalho escravo, redução da taxa de desmatamento etc. É verdade que ainda há muito a se avançar em várias áreas vitais do Brasil, mas não há como negar que o atual governo do PT na Presidência da República tem favorecido a garantia dos direitos humanos da população brasileira, o que, com certeza, não aconteceria num “império de iniquidade”. Está ficando cada vez mais claro que os pregadores que anunciam dos seus púpitos o início de uma suposta amplitude do mal, numa continuidade do PT no Executivo Federal, são os que estão com saudade do Brasil ajoelhado diante do capital estrangeiro, produzindo e gerenciando miséria, matando trabalhadores rurais, favorecendo os latifundiários, tratando aposentados como vagabundos, humilhando os desempregados e propondo o fim da história.
Enfim, a Aliança de Batistas do Brasil vem a público levantar o seu protesto contra o processo apelatório e discriminador que nos últimos dias tem associado o Partido dos Trabalhadores às forças da iniquidade. Lamentamos, sobretudo, a participação de líderes e igrejas cristãs nesses discursos e atitudes, que lembram muito a preparação das fogueiras da inquisição.
Maceió, 10 de setembro de 2010.
Pastora Odja Barros Santos – Presidente
Pastores/as batistas membros da Aliança
Pr. Joel Zeferino _ Igreja Batista Nazaré – Salvador-BA
Pr. Wellington Santos – Igreja Batista do Pinheiro – Maceió-AL
Pr. Paulo César – Igreja Batista Bultrins – Olinda –PE
Pr. Paulo Nascimento – Igreja Batista da Forene – Maceió-AL
Pr. Reginaldo José da Silva – Igreja Batista da Cidade evangélica dos órfãos – Bonança-PE
Pr. Waldir Martins Barbosa – Ig. Batista Esperança
Pr. Silvan dos Santos – Igreja Batista Pinheiros – São Lourenço da Mata- PE
Pr. Marcos Monteiro – Comunidade de Jesus – Feira de Santana – BA
Pr. João Carlos Silva de Araujo - Primeira Igreja Batista do Recreio
Pra. Marinilza dos Santos - Igreja Batista Pinheiros – São Lourenço da Mata- PE
Pr. Adriano Trajano – Chã Preta – AL
Pr. Pedro Virgilio da Silva Filho - Serrinha BA
Pr. Gilmar de Araújo Duarte - PIB Brás de Pina – RJ
Pr. Alessandro Rodrigues Rocha - SIB Petrópolis, Petrópolis RJ
Pr. Nilo Tavares Silva - Igreja:Batista em Praça do Carmo, Rio de Janeiro RJ
Pr.Luis Nascimento - Princeton, NJ – USA
Pr.Raimundo Barreto – USA

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

EM NOME DE d-EU-S


Ou “Quando fé e violência são uma coisa só”

Listen when the prophet
Speaks to you
Killing in the name of God
Passion
Twisting faith into violence
In the name of God
Blurring the lines
Between virtue and sin
They can’t tell
Where God ends
And manking Begins
(In the name of God, Dream Theater)

Nos últimos dias, dois pastores batistas chamaram a atenção de muita gente, um nos Estados Unidos, e outro no Brasil. O primeiro teve a repercussão de sua fala ecoada mais intensamente na TV. O segundo, na Internet. Por si só, a repercussão de suas falas nos fala muito de nosso mundo dito pós-moderno. O que quer que pós-modernidade signifique, esse conceito deve incluir a convicção do quanto a religião continua presente como força cultural que afeta não somente a vida privada das pessoas, mas também repercute e influencia a vida pública.
Se a secularização fosse um fenômeno totalizante socialmente falando, os dois pastores mencionados não chamariam tanta atenção e nem causariam tanta preocupação. Mas num mundo onde o religioso permanece como força produtora de sentido absoluto e de conduta social, não se pode desprezar o impacto que as duas falas possam vir a causar no tecido social.
Tentando exercitar a brevidade, eu desejaria avaliar as duas falas à luz daquilo que Edgar Morin (2010) costuma chamar de “ecologia da ação”. Segundo Morin, dois princípios marcam a ecologia da ação:
(1) O fato de que toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado;
(2) As conseqüências últimas da ação são imprevisíveis.
Outros referenciais teóricos que poderiam nos ajudar na avaliação dessas falas são a “análise do discurso” (Foucault, Heritage, Pêcheux, Bakhtin, etc.) e o “construcionismo social” (Gergen, Ibañez, Haking, Berger & Luckmann, etc.). Como se tratam de referenciais teóricos muito amplos, eu me contentaria em dizer que (mesmo correndo o risco de uma extrema simplificação) sua grande contribuição está no fato de nos ajudarem a pensar nos efeitos produzidos pela rede discursiva numa determinada sociedade. Eles nos ajudam a pensar nas táticas que transformam discursos relativos em “jogos de verdade” (Foucault, 1996). E como esses jogos de verdade contribuem na construção social da realidade.
Ambos os pastores pretendem falar em nome de Deus. Deus, conforme Paul Tillich (1993), é o nome que os seres humanos dão a tudo aquilo que os toca de forma incondicional e última. É o nome daquilo que é absoluto, estando acima de todos os valores, não determinado por condicionamentos históricos ou sociais. Portanto, existirão tantos deuses quanto a iniciativa humana desejar. Porque são muitas as criações humanas elevadas à qualidade do absoluto, do incondicional e do a-histórico.
Idéias filosóficas, dogmas religiosos, teorias científicas, projetos políticos, sistemas econômicos, são exemplos dos muitos deuses existentes entre os seres humanos. Tillich nos explica que toda vez que isso ocorre – ou seja, toda vez que uma realidade humana transitória, histórica, passageira, é elevada à categoria de ultimacidade e incondicionalidade –, cometemos idolatria. Toda vez que uma criação humana é revestida de valor absoluto e inquestionável, os seres humanos tornam-se idólatras. Não era a toa que João Calvino nos chamava a atenção para o fato de que a cabeça humana é uma fábrica de ídolos.
Nesse sentido, Jon Sobrino (1997) tem toda razão quando nos convida a tomar a idolatria a sério. Para ele, essa deveria ser a tarefa fundamental da Teologia nos dias de hoje. Mas por quê seria assim? Penso que por duas razões:
(1) A primeira vem de Nietzsche (1992), que nos dizia o seguinte: “o proprium de toda grande idolatria reside no fato de que ela apaga no ser idolatrado idiossincrasias e feições originais, feições com freqüência penosamente estranhas; ela mesma sequer as enxerga”. É verdade, o idólatra está cego para as feições monstruosas do deus a quem serve. Tal cegueira, conforme a antiga sabedoria do Salmo 115, faz com que idólatras e ídolos se assemelhem;
(2) A segunda diz respeito ao fato de que a sobrevivência do ídolo depende da negação e da morte dos infiéis, dos insubmissos, e dos arredios à sua vontade. O ídolo não pode suportar discursos opostos ao seu, pois ele é algo “absoluto”, “atemporal”, “inquestionável”, a quem as pessoas devem aderir sem contestação. A eliminação dos inimigos e o sacrifício de vidas humanas é o preço de sua sobrevivência.
Ambos os pastores falam, portanto, em nome de um ídolo a quem se assemelham. E o nome do ídolo é este: Religião. O sobrenome é este: Protestantismo.
O primeiro pastor o faz exigindo o sacrifício específico dos mulçumanos. O segundo, pelo viés da política, exigindo o sacrifício de gays, lésbicas, divorciados, e outros. O primeiro exige a pureza espiritual e étnica como vassoura para os impuros e hereges adoradores de Alá. O segundo exige a pureza política, moral e religiosa como vassoura para livres-pensadores, “petistas”, imorais e pagãos. Ora, ídolos não suportam diálogos, discussões francas de idéias, escuta dos outros. Para quê dialogar se de antemão estou convencido de que minha verdade deve ser o prumo do mundo? Por isso, onde os ídolos falam, seus porta-vozes apresentam-se como bastiões da moral, dos altos valores humanos, que necessitam da imposição como meio de efetivação.
Os discursos de ambos os pastores, observados os princípios da ecologia da ação, em lugar de promoverem a defesa da vida, espalham sementes de morte, de ressentimentos, e reforçam preconceitos já tão enraizados na sociedade. Em suas bocas, a palavra humana que deveria veicular a Palavra de Deus, torna-se a palavra do Diabo Humano que lateja em todos nós.
Ídolo e idólatras são cegos. Não vêem que naqueles em quem os discursos dos referidos pastores encontram adesão, cria-se e reforça-se uma legião de gente disposta a ir deixando o mundo cada vez mais feio. Não vêem que tais discursos formam gente que, por fidelidade ao ídolo, não percebem que a “cruzada pela vida” produz efeitos de segregação e morte.
O Dream Theater, numa de suas canções, nos convida a ouvir os profetas que falam em nome de Deus, misturando fé e violência. Mas para resistir a eles, e nunca acatar sua palavra.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita – Repensar a reforma, reformar o pensamento. 17ª edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo – Maldição do Cristianismo. São Paulo: Newton Compton, 1992
SOBRINO, Jon. Ateísmo e idolatria. In: SOARES, Afonso Maria Ligorio (org.). Juan Luis Segundo: uma teologia com sabor de vida. Tradução de Afonso Maria Ligorio, São Paulo: Paulinas, 1997
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1993

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

POLÍTICA, TEOLOGIA E BÍBLIA



Existem critérios bíblico-teológicos para a escolha político-partidária?


Nesse tempo de expectativas quanto ao futuro político de nosso país e de nossos estados, pode o conhecimento religioso nos oferecer bons critérios para nossas escolhas político-ideológicas? Pode a Teologia nos ajudar no discernimento das melhores propostas entre tamanha diversidade partidária? Pode a Teologia nos oferecer critérios de discernimento eficazes na escolha do nosso voto? Em minha opinião, a resposta é afirmativa para todas as questões acima.

Sim! O conhecimento religioso pode nos ajudar no momento de escolher entre as variadas propostas políticas de que dispomos. Isso por duas razões:

(1) Embora no Ocidente a política, sobretudo a de Estado, se proponha apartada da influência religiosa e acentue constantemente seu caráter laico, o substrato religioso está presente como sua argamassa filosófica e como seu pano-de-fundo antropológico. O cidadão a quem os estados democráticos procuram tutelar é o cidadão forjado pelo substrato religioso do Ocidente, sobretudo como sujeito de direitos inalienáveis;

(2) A vivência da fé, quer queira o crente, quer não, ou quer perceba o crente, quer não, tem implicações políticas diretas no tecido social, às vezes com matizes progressistas e transformadoras e às vezes com matizes reacionárias e mantenedoras do status quo. Em outras palavras, a vivencia da fé é um ato político por necessidade, como o são a vivência de outros arranjos da cultura humana em geral. Por vezes ouve-se a idéia da neutralidade das igrejas no campo político. O que estamos dizendo aqui é que essa neutralidade é impossível. A isenção do envolvimento nos processos políticos é também uma ação política com efeitos peculiares. Certamente danosos.

Para sermos um pouco mais realistas, é preciso dizer que os fatos atuais já não condizem tanto com a idéia de neutralidade e de isenção das igrejas no processo político-partidário do Brasil. Dito coloquialmente, a política já entrou nas igrejas faz algum tempo. Falando especialmente do campo religioso evangélico brasileiro, muita coisa mudou em pouco tempo. Se por um lado as denominações “históricas” preservam um pouco de sua tentativa de isenção na política partidária (quase sempre derivada de uma interpretação apressada do princípio de separação entre Igreja e Estado), as denominações “emergentes”, pouco atreladas a compromissos ideológicos construídos historicamente, fazem política livre e abertamente.

Por conta do espaço, eu não gostaria de empreender aqui uma avaliação da política feita pelos “evangélicos emergentes” no Brasil. Basta mencionar o fato de que, diferentemente dos chamados “evangélicos tradicionais”, aqueles se fazem representar nas instâncias oficiais do Estado, e os seus interesses particulares ditam a pauta da atuação política de seus representantes. Além disso, para os fins do problema colocado no início do nosso artigo, bastaria mencionar que a escolha dos representantes políticos de tais grupos de maneira alguma é feita com base em critérios bíblico-teológicos que consideremos razoáveis.

Mas antes de comentar acerca dos critérios bíblico-teológicos que consideramos possuírem força norteadora para nossa escolha política, é preciso fazer duas advertências sérias.

Em primeiro lugar, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem no discernimento das propostas político-partidárias pode conduzir muita gente ao equívoco de pensar que a Bíblia e a Teologia possuem propostas fixas, ou referenciais a-históricos, ou “princípios eternos” aplicáveis a qualquer tempo e circunstância, para os seres humanos e para a sociedade. Pensar assim, obviamente, facilitaria tudo. Bastaria aplicar aquilo que a Bíblia e a Teologia postularam de forma a-histórica à história, nesse caso, à política. Mas não é o caso. Para mim, nem a Bíblia nem a Teologia possuem referenciais fixos e a-históricos, aplicáveis em todo tempo e circunstância, aos seres humanos. O que a fé bíblica parece testemunhar (e a Teologia deveria assumir) é a cambiante construção do humano. O fazer-se e o refazer-se, em suas variadas expressões culturais, religiosas, sexuais, políticas, artísticas, jurídicas, existenciais, etc., é o que de melhor testemunha o texto bíblico. A historicidade da organização política e da autocompreensão existencial humana, em sua provisoriedade, estão presentes em cada porção da Bíblia. Em síntese, por mais contraditório que pareça, a Bíblia é um dos livros mais antidogmáticos que conhecemos.

Isso posto, reitero: o desafio que propusemos no início desse artigo – isto é, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem em nossa escolha político-ideológica – não será enfrentado com a aplicação de princípios a-históricos aplicados à história e à política atuais. Esse desafio será pensado levando em conta “o espírito da Bíblia”, e não sua letra.

Em segundo lugar, os critérios apresentados abaixo dizem respeito a projetos políticos, e não a indivíduos. É desnecessário advogar acerca da idoneidade moral dos que nos dirigem na arena política. No entanto, parece que a maioria das pessoas se contenta com idoneidade do sujeito investido de uma função política, sem prestar atenção na qualidade do projeto no qual ele está inserido. Já chegou a hora de entendermos que ninguém faz política com sua biografia debaixo do braço. A idoneidade moral de um candidato ou candidata não deve ser o único item de nossa consciência política. Também seu projeto deve nos interessar. Um projeto político implica um fundo filosófico, antropológico, e em muitos casos, religioso. Implica uma visão da vida e do ser humano que nos compete conhecer. Os critérios seguintes estão interessados nesse tema que tem relação com os projetos políticos.

Abertura ao novo

O novo é um dos temas mais recorrentes na Bíblia. Como relato de um povo em caminhada, não poderia ser diferente. Ora, se o novo está em jogo, a provisoriedade também deve marcar presença efetiva. O novo, na Bíblia, aparece não somente como surpresa e como inesperado, mas como convite e como programa. Inclusive, comparece ali como a finalidade da História: “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Até quando surge como risco e como incerteza, tendo a desaprovação de Javé, o novo é preponderantemente assumido na Bíblia (1Sm 8). Esse lugar do novo na Bíblia corrobora aquilo que dissemos mais acima, acerca da cambiante condição humana na história. É como ser inconcluso movido pela vontade de “ser mais” que o novo é uma constante na história bíblica. A Teologia também advoga em favor da novidade. Em certa medida, ela funciona como matriz do novo quando os esquemas dogmáticos tentam encarcerar a interpretação da Bíblia em categorias velhas e contraproducentes.

A abertura ao novo comparece então como um importante critério de discernimento bíblico-teológico na escolha de projetos político-partidários. No Brasil, a racionalidade política tende historicamente ao conservadorismo e à procrastinação de reformas até o limite do suportável. Nos últimos anos o tema da reforma política chegou a encantar amplos setores da sociedade civil, mas sem malogro de suas pretensões. A reforma tributária e judiciária de que tanto necessitamos permanecem sonhos distantes. É bem verdade que amplos interesses, para além de uma simples fobia do novo, emperram o sucesso dessas propostas reformatórias. Mas também esses interesses, majoritariamente de ordem econômica, se sustentam em visões de mundo retrógradas, assentadas no latifúndio, na concentração dos meios de produção, que se constituem como travas no processo de renovação dos mecanismos político-legais de modernização do país.

Um projeto político baseado na abertura ao novo não é simplesmente um projeto político reformista. Antes, é aquele que conjuga a necessidade de reformas com a coragem do enfrentamento de visões de mundo tacitamente ultrapassadas, que tanto marcam nossos parlamentares.

Inclusão dos marginalizados

Como é estranho que a Bíblia e as Teologias que dela derivam sejam instrumentos de exclusão de tanta gente. Como tudo isso é contrário ao espírito da Bíblia! Também é estranho que a maioria das pessoas, sobretudo as de mentalidade ilustrada, desprezem o fato de que nossos celebrados “Direitos Humanos” têm como substrato de formação o Cristianismo. Não se ancoram, como muita gente pensa, no sujeito da Modernidade. Se a Modernidade foi importante na sedimentação da noção de sujeito, as concepções antropológicas que deram dignidade a este sujeito são anteriores a ela. Remetem ao Cristianismo como uma das matrizes culturais do Ocidente.

Umas das maiores novidades da fé bíblica consiste em justamente advogar a total dignidade de todo e qualquer ser humano. A práxis de Jesus de Nazaré não consistiu em outra coisa senão na vontade de humanizar aquelas pessoas consideradas impuras pela religião, e aquelas sem amparo de quaisquer instâncias oficiais. No “reino de Deus”, que é o nome dado por Jesus de Nazaré à nova sociedade habitada por um nove ser humano, aqueles a quem todos desprezam precedem as pessoas mais virtuosas (Mt 21,31). No projeto de uma sociedade marcada por valores diferentes como preconizada por Jesus, há lugar para todo tipo de gente.

Um projeto político-partidário que privilegie as políticas públicas de inclusão dos proscritos deve ser muito bem visto. São muitos os sujeitos excluídos e muitas as razões da exclusão social em nossos dias. Não nos compete enumerá-los todos aqui. Por muito tempo os pobres apareceram como foco das políticas de inclusão social. Hoje, além deles, novos atores sociais se organizam para dar visibilidade a outros grupos socialmente marginalizados, como negros, gays e lésbicas, deficientes físicos, sem-terra, mulheres, idosos, imigrantes, etc. Para além do histórico descaso político, essas minorias precisam enfrentar um mundo de representações sociais preconceituosas presentes no cotidiano, o que torna suas vidas mais difíceis. Concordo plenamente com o pastor Luis Longuinni Neto quando dizia que “a sociedade é conservadora”. Neste caso, as políticas públicas de inclusão desses grupos dão conta daquilo que a persuasão informal não consegue dar.

Tensionamentos frente aos poderes desumanizadores

Este é o outro lado da luta por inclusão dos excluídos. No centro da mensagem bíblica está o que eu chamo de “teologia da cruz”. A cruz é um NÃO! frontal à proposta da nova sociedade chamada “reino de Deus”. A cruz é o produto do tencionamento com aqueles poderes que se interpuseram a este projeto. A cruz tornou-se o emblema maior da cristandade. Mas poderia ser usada também como emblema maior de todas as visões de mundo e de todas as práticas excludentes, sejam oriundas da economia, da política, da religião, que não permitem que o ser humano goze a vida com liberdade e plenitude. Mais do que qualquer outro símbolo, a cruz ratifica que não existe conquista dos excluídos que não passe pela luta e pelo tensionamento. Não existem conquistas dos excluídos que sejam concessões dos opressores. A cruz, portanto, também é o símbolo da manutenção do status quo. Ela é aquele item da teologia bíblica que recorda a dimensão do tensionamento presente em qualquer projeto humanizador.

Michel Foucault dizia que “a política é a continuação da guerra por outros meios”. Sem rodeios, isso é uma verdade literal. É impossível fazer política sem tensionamentos. Como um critério bíblico-teológico, isso nos alia a todo projeto político que assuma tensionamentos explícitos contra alvos explícitos, flagrantemente responsáveis pela manutenção do atraso na sociedade. Um projeto político-partidário, nessa ótica, não pode corroborar as vontades e estratégias de setores que mais exploram do que beneficiam a população. No universo do trabalho e da economia essa é uma realidade cotidiana. Há casos, como o alagoano, em que a elite política quase sempre é a mesma elite econômica, onde o Estado, como diria um economista local, é somente o guarda-chuva das intenções econômicas dessa mesma elite. Esse é um item delicadíssimo atualmente, uma vez que a idéia de “estado mínimo” tem sido vendida como condicio sine qua non para os investimentos econômicos em certos lugares.

Dialogicidade e respeito à alteridade

A pesquisa teológica, sobretudo a exegética, vem demonstrando o quanto a Bíblia é produto de diálogos interculturais. Não poderia ser diferente. Como expressão de uma determinada cultura, e em comum com todas as culturas, os diálogos, as aproximações e apropriações, os sincretismos e os tensionamentos, também estão implicados na formação da Bíblia como texto religioso. Não há cultura que baste a si mesma. A dialogicidade e a presença da alteridade chegam aparecer de forma nua nos textos bíblicos. Abraão, patriarca da fé de Israel, é um caananita. Outra caananita entra na genealogia de Jesus. Códigos religiosos e legais explicitamente pertencentes a outras culturas, são apropriados por Israel e anexados à sua vida social e religiosa. Gêneros literários amplamente presentes nas culturas do entorno dão forma aos escritos judaicos presentes no Antigo Testamento. A própria atitude Jesus frente a elementos de culturas vizinhas pode ser compreendida como expressão de dialogicidade e de respeito à alteridade.

Dialogicidade e respeito à alteridade só são possíveis onde existe plena consciência dos próprios limites e imperfeições. Do contrário, para que dialogar e ouvir o outro quando estou convencido de minha perfeição e impecabilidade? Dialogicidade e respeito à alteridade, portanto, são prerrogativas do sujeito que é crítico, mas sobretudo autocrítico.

Dialogicidade e respeito à alteridade são bons critérios bíblico-teológicos na escolha de qualquer projeto político-partidário. De cara, isso exclui todos aqueles projetos governistas tipicamente sectários, formados por plataformas antidialógicas que mais lembram certas igrejas que propriamente partidos políticos. A capacidade de diálogo, por vezes de concessão mesmo, deve ser uma virtude política de primeira ordem. Aqui entra a necessidade de avaliação das alianças partidárias, tão incompreendidas e tão pouco aceitas por tanta gente. De fato certas alianças políticas podem ser tacitamente vistas como inaceitáveis. Porém, avaliando a questão um pouco mais a fundo, a pluradidade ideológica que uma composição política pode proporcionar também pode funcionar como elemento de crítica constante dos projetos particulares de cada partido.

O papel da oposição, como tem mostrado reiteradamente a história, não é a crítica: é opor-se! Composições plurais e alianças partidárias, se não forem somente produto da vontade de franquear poderes e cargos, podem cumprir essa função da dialogicidade e da crítica, de que nenhum projeto político está isento.

Menos paternalismo e mais aposta no capital humano

Finalmente, também é permitido dizer que a Bíblia é um livro marcado por uma visão otimista no que diz respeito às potencialidades humanas. Mais do que isso, ela mesma é produto dessa realidade. Ela é produto de comunidades perseguidas, oprimidas, excluídas. Tendo sido produzida nessas condições de adversidade, é razoável que ela espose uma atitude otimista diante da vida. Na contramão de um preconceito muito comum e com cara de ciência, que infantiliza o crente por conta de sua fé, na Bíblia as situações de encorajamento do ser humano enquanto potencializador de sua própria história são abundantes. Acerca disso, Émille Durkheim reconheceu que o crente que “entrou em comunhão com Deus não é apenas uma pessoa que aceitou novas verdades sobre a vida. Além disso, ele é alguém que se tornou mais forte que as demais pessoas, e mais apta a conquistar as intempéries da vida”. Em palavras simples, diríamos que a fé, no lugar de alienar o ser humano, pode ser um elemento que potencializa suas virtudes latentes.

Que implicação isso pode ter na escolha de um projeto político-partidário? Não são justamente as ações assistencialistas as mais alardeadas na propaganda política como feitos inestimáveis de partidos e governos? O que pouca gente sabe é que a maioria dos programas assistencialistas são todos eles mantidos por “resíduos orçamentários”. Eles não compõem a prioridade orçamentária de nossas políticas públicas de assistência social. Precisaríamos inverter essa equação, e fazer das políticas ligadas a ações de formação humana uma prioridade orçamentária. Usando a metáfora do povo, esse critério bíblico-teológico nos identificaria com aqueles projetos político-partidários que privilegiassem o “ensinar a pescar” em relação ao “dar o peixe pronto”.

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Difícil é ter esperança de encontrar projetos concretos que encarnem esses valores. Mas uma coisa é certa: guiar-se por esses critérios tem seu benefício prático. No mínino, eles nos ajudam a depurar projetos inconseqüentes e inconsistentes com nossa visão de mundo. No mais, talvez nos aproximem daquele que seja o menos pior (sic).

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

RESENHA DE "POR QUE A PSICANÁLISE?"


RESENHA DE

POR QUE A PSICANÁLISE?

de

Elisabeth Roudinesco

Elisabeth Roudinesco é francesa, historiadora e psicanalista, além de ser professora na Universidade de Paris-VII e vice-presidente da Sociedade Internacional de História da Psicanálise. É também autora de vários livros na área de história da psicanálise. Por que a psicanálise? teve sua primeira publicação na França em 1999, e foi publicado no Brasil no ano 2000 pela editora Jorge Zahar, tendo sido traduzido por Vera Ribeiro. A edição brasileira tem 168 páginas. A obra está dividida em três seções, cada qual contendo quatro capítulos, o que contabiliza o número final de doze capítulos.

Roudinesco conseguiu a difícil tarefa (nem sempre bem sucedida por inúmeros autores) de situar o grande público numa discussão de alto nível. Seu texto é fluente, simples e didático, facilitando em muito a compreensão das idéias nele desenvolvidas. Embora seu tema envolva aspectos técnicos como, por exemplo, a questão dos psicofármacos e os documentos norteadores da atuação clínica (como o DSM), sua linguagem é livre de tecnicismos, e em todo o tempo é nítida a preocupação de tornar a discussão acessível mesmo àqueles que nunca foram introduzidos na temática. A autora promove, além disso, uma franca discussão com posições antagônicas às suas, citando autores e obras que podem ser consultados a contento, evitando aquele diletantismo freqüente entre os intelectuais de afrontarem “conceitos puros”, sem discernir-lhes a fonte.

Em termos conteudísticos, a leitura das primeiras linhas deixa evidente que se trata de uma defesa da psicanálise. Seu livro pode ser resumido como uma tentativa de defesa da plausibilidade da teoria freudiana na contemporaneidade em meio ao imperialismo da indústria farmacológica e em meio a uma sociedade mais afeita aos tratamentos psíquicos de curto prazo. Nesse sentido, sua defesa da psicanálise é, por que não dizer, apaixonada. Toda sua argumentação caminha na direção da pergunta que marca o título do livro: por que a psicanálise? O esforço da autora consiste, portanto, em responder a essa questão da seguinte maneira: porque a psicanálise, a despeito das contestações que lhe vêm de diversas frentes, parte do pressuposto de que as desordens psíquicas devem ser tratadas a partir de suas causas mais profundas, sobretudo as inconscientes, não se conformando com a ação meramente paliativa de nível neuronal e farmacológico. Além desse centro em torno do qual gira esta obra, o leitor pode encontrar aí uma instigante reflexão sobre a situação da psicanálise nos dias atuais. É, portanto, um ótimo texto introdutório que contribui tanto para aqueles que já lidam profissionalmente com essa ciência, quanto para aqueles que enfrentam agora o período de formação teórica nessa área, assim como para aqueles que nunca tiveram iniciação formal com ela, mas interessam-se na questão de sua pertinência ou impertinência. Sem dúvida, é um livro obrigatório para todos os que se interessam nos dilemas mais profundos pelos quais tem de passar o ser humano.

Se Zygmunt Bauman estiver correto quanto adjetiva esse período histórico como tempos líquidos e como modernidade líquida, os desafios que se põem frente à psicanálise descritos por Roudinesco, embora sejam enormes, não deverão surpreender a ninguém. É verdade que nossos tempos são marcados pela fluidez e pela volatilidade de todos os valores, alimentados pela terrível inclinação ao imediatismo como marca de um ser inquieto e ansioso. Na sociedade de consumo, onde os desejos humanos são regulados pelas demandas do mercado, perdem sentido as experiências de profundidade, sobretudo quando se trata das questões mais íntimas da subjetividade humana. Esses tempos trazem como marca a satisfação rápida e contínua de uma torrente de desejos que não cessam de se renovar ao toque de caixa do mercado. Em outras palavras, o atual centro regulador da maioria das atividades humanas – o mercado –, coopta aos seus interesses todas as necessidades e carências da experiência pessoal, mormente nas sociedades ocidentais.

A meu ver, Roudinesco oferece uma pertinente avaliação das razões estritamente científicas de contestação da indústria farmacológica à psicanálise. No entanto, penso que as razões dessa contestação podem ser lidas também à luz dos entraves político-econômicos que marcam esse período**. É preciso afirmar, portanto, que o imperialismo dos psicofármacos é mais uma expressão de uma interessante amálgama produzida pelas imposições do capital. Essa amálgama envolve aspectos antropológicos, sobretudo quando se dirige ao homem cujo ser é definido pela capacidade de consumo e pela fluidez de toda experiência, além de envolver aspectos econômicos, quando se trata de sustentar uma indústria que vive à base daquela antropologia. Em outras palavras, a indústria medicamentosa sobrevive e se alimenta de uma imagem de homem que o mercado produz: inquieto, ansioso, consumista e imediatista. Dessa forma, elementos antropológicos e econômicos estão totalmente imbricados.

Que outros epítetos poderia ter um saber como a psicanálise nesse contexto? Como não poderia ser adjetivada de anacrônica e ultrapassada nessa sociedade líquida, marcada pelo consumo, pelo imediatismo e pela superficialidade? Como poderia insistir no seu discurso clássico de lidar com as bases mais profundas do ser humano, quando este só reconhece como pertinente as experiências voláteis que se lhe apresentam um dia após o outro? Como poderia sobreviver em paz se não corrobora essa imagem antropológica do homo consumens, e se não corrobora a manutenção de um dos braços do capital – a psicofarmacologia? Não resta dúvida de que esses são tempos decisivos para a sobrevivência desse saber profundamente identificado com o ser humano, sobretudo com suas questões mais íntimas e profundas, negadas vilmente por nossa atual conjuntura.

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ROUDINESCO, Elisabeth (2000). Por que a psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar


** Mas também é verdade que a autora tenha sinalizado ligeiramente este aspecto, e que essa discussão não tenha sido o foco de seu livro.