
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
E AGORA, O QUE FAREMOS NÓS? [1]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
ELEIÇÕES 2010 - PRONUNCIAMENTO DA ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL

sexta-feira, 10 de setembro de 2010
EM NOME DE d-EU-S

quarta-feira, 25 de agosto de 2010
POLÍTICA, TEOLOGIA E BÍBLIA

Existem critérios bíblico-teológicos para a escolha político-partidária?
Nesse tempo de expectativas quanto ao futuro político de nosso país e de nossos estados, pode o conhecimento religioso nos oferecer bons critérios para nossas escolhas político-ideológicas? Pode a Teologia nos ajudar no discernimento das melhores propostas entre tamanha diversidade partidária? Pode a Teologia nos oferecer critérios de discernimento eficazes na escolha do nosso voto? Em minha opinião, a resposta é afirmativa para todas as questões acima.
Sim! O conhecimento religioso pode nos ajudar no momento de escolher entre as variadas propostas políticas de que dispomos. Isso por duas razões:
(1) Embora no Ocidente a política, sobretudo a de Estado, se proponha apartada da influência religiosa e acentue constantemente seu caráter laico, o substrato religioso está presente como sua argamassa filosófica e como seu pano-de-fundo antropológico. O cidadão a quem os estados democráticos procuram tutelar é o cidadão forjado pelo substrato religioso do Ocidente, sobretudo como sujeito de direitos inalienáveis;
(2) A vivência da fé, quer queira o crente, quer não, ou quer perceba o crente, quer não, tem implicações políticas diretas no tecido social, às vezes com matizes progressistas e transformadoras e às vezes com matizes reacionárias e mantenedoras do status quo. Em outras palavras, a vivencia da fé é um ato político por necessidade, como o são a vivência de outros arranjos da cultura humana em geral. Por vezes ouve-se a idéia da neutralidade das igrejas no campo político. O que estamos dizendo aqui é que essa neutralidade é impossível. A isenção do envolvimento nos processos políticos é também uma ação política com efeitos peculiares. Certamente danosos.
Para sermos um pouco mais realistas, é preciso dizer que os fatos atuais já não condizem tanto com a idéia de neutralidade e de isenção das igrejas no processo político-partidário do Brasil. Dito coloquialmente, a política já entrou nas igrejas faz algum tempo. Falando especialmente do campo religioso evangélico brasileiro, muita coisa mudou em pouco tempo. Se por um lado as denominações “históricas” preservam um pouco de sua tentativa de isenção na política partidária (quase sempre derivada de uma interpretação apressada do princípio de separação entre Igreja e Estado), as denominações “emergentes”, pouco atreladas a compromissos ideológicos construídos historicamente, fazem política livre e abertamente.
Por conta do espaço, eu não gostaria de empreender aqui uma avaliação da política feita pelos “evangélicos emergentes” no Brasil. Basta mencionar o fato de que, diferentemente dos chamados “evangélicos tradicionais”, aqueles se fazem representar nas instâncias oficiais do Estado, e os seus interesses particulares ditam a pauta da atuação política de seus representantes. Além disso, para os fins do problema colocado no início do nosso artigo, bastaria mencionar que a escolha dos representantes políticos de tais grupos de maneira alguma é feita com base em critérios bíblico-teológicos que consideremos razoáveis.
Mas antes de comentar acerca dos critérios bíblico-teológicos que consideramos possuírem força norteadora para nossa escolha política, é preciso fazer duas advertências sérias.
Em primeiro lugar, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem no discernimento das propostas político-partidárias pode conduzir muita gente ao equívoco de pensar que a Bíblia e a Teologia possuem propostas fixas, ou referenciais a-históricos, ou “princípios eternos” aplicáveis a qualquer tempo e circunstância, para os seres humanos e para a sociedade. Pensar assim, obviamente, facilitaria tudo. Bastaria aplicar aquilo que a Bíblia e a Teologia postularam de forma a-histórica à história, nesse caso, à política. Mas não é o caso. Para mim, nem a Bíblia nem a Teologia possuem referenciais fixos e a-históricos, aplicáveis em todo tempo e circunstância, aos seres humanos. O que a fé bíblica parece testemunhar (e a Teologia deveria assumir) é a cambiante construção do humano. O fazer-se e o refazer-se, em suas variadas expressões culturais, religiosas, sexuais, políticas, artísticas, jurídicas, existenciais, etc., é o que de melhor testemunha o texto bíblico. A historicidade da organização política e da autocompreensão existencial humana, em sua provisoriedade, estão presentes em cada porção da Bíblia. Em síntese, por mais contraditório que pareça, a Bíblia é um dos livros mais antidogmáticos que conhecemos.
Isso posto, reitero: o desafio que propusemos no início desse artigo – isto é, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem em nossa escolha político-ideológica – não será enfrentado com a aplicação de princípios a-históricos aplicados à história e à política atuais. Esse desafio será pensado levando em conta “o espírito da Bíblia”, e não sua letra.
Em segundo lugar, os critérios apresentados abaixo dizem respeito a projetos políticos, e não a indivíduos. É desnecessário advogar acerca da idoneidade moral dos que nos dirigem na arena política. No entanto, parece que a maioria das pessoas se contenta com idoneidade do sujeito investido de uma função política, sem prestar atenção na qualidade do projeto no qual ele está inserido. Já chegou a hora de entendermos que ninguém faz política com sua biografia debaixo do braço. A idoneidade moral de um candidato ou candidata não deve ser o único item de nossa consciência política. Também seu projeto deve nos interessar. Um projeto político implica um fundo filosófico, antropológico, e em muitos casos, religioso. Implica uma visão da vida e do ser humano que nos compete conhecer. Os critérios seguintes estão interessados nesse tema que tem relação com os projetos políticos.
Abertura ao novo
O novo é um dos temas mais recorrentes na Bíblia. Como relato de um povo em caminhada, não poderia ser diferente. Ora, se o novo está em jogo, a provisoriedade também deve marcar presença efetiva. O novo, na Bíblia, aparece não somente como surpresa e como inesperado, mas como convite e como programa. Inclusive, comparece ali como a finalidade da História: “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Até quando surge como risco e como incerteza, tendo a desaprovação de Javé, o novo é preponderantemente assumido na Bíblia (1Sm 8). Esse lugar do novo na Bíblia corrobora aquilo que dissemos mais acima, acerca da cambiante condição humana na história. É como ser inconcluso movido pela vontade de “ser mais” que o novo é uma constante na história bíblica. A Teologia também advoga em favor da novidade. Em certa medida, ela funciona como matriz do novo quando os esquemas dogmáticos tentam encarcerar a interpretação da Bíblia em categorias velhas e contraproducentes.
A abertura ao novo comparece então como um importante critério de discernimento bíblico-teológico na escolha de projetos político-partidários. No Brasil, a racionalidade política tende historicamente ao conservadorismo e à procrastinação de reformas até o limite do suportável. Nos últimos anos o tema da reforma política chegou a encantar amplos setores da sociedade civil, mas sem malogro de suas pretensões. A reforma tributária e judiciária de que tanto necessitamos permanecem sonhos distantes. É bem verdade que amplos interesses, para além de uma simples fobia do novo, emperram o sucesso dessas propostas reformatórias. Mas também esses interesses, majoritariamente de ordem econômica, se sustentam em visões de mundo retrógradas, assentadas no latifúndio, na concentração dos meios de produção, que se constituem como travas no processo de renovação dos mecanismos político-legais de modernização do país.
Um projeto político baseado na abertura ao novo não é simplesmente um projeto político reformista. Antes, é aquele que conjuga a necessidade de reformas com a coragem do enfrentamento de visões de mundo tacitamente ultrapassadas, que tanto marcam nossos parlamentares.
Inclusão dos marginalizados
Como é estranho que a Bíblia e as Teologias que dela derivam sejam instrumentos de exclusão de tanta gente. Como tudo isso é contrário ao espírito da Bíblia! Também é estranho que a maioria das pessoas, sobretudo as de mentalidade ilustrada, desprezem o fato de que nossos celebrados “Direitos Humanos” têm como substrato de formação o Cristianismo. Não se ancoram, como muita gente pensa, no sujeito da Modernidade. Se a Modernidade foi importante na sedimentação da noção de sujeito, as concepções antropológicas que deram dignidade a este sujeito são anteriores a ela. Remetem ao Cristianismo como uma das matrizes culturais do Ocidente.
Umas das maiores novidades da fé bíblica consiste em justamente advogar a total dignidade de todo e qualquer ser humano. A práxis de Jesus de Nazaré não consistiu em outra coisa senão na vontade de humanizar aquelas pessoas consideradas impuras pela religião, e aquelas sem amparo de quaisquer instâncias oficiais. No “reino de Deus”, que é o nome dado por Jesus de Nazaré à nova sociedade habitada por um nove ser humano, aqueles a quem todos desprezam precedem as pessoas mais virtuosas (Mt 21,31). No projeto de uma sociedade marcada por valores diferentes como preconizada por Jesus, há lugar para todo tipo de gente.
Um projeto político-partidário que privilegie as políticas públicas de inclusão dos proscritos deve ser muito bem visto. São muitos os sujeitos excluídos e muitas as razões da exclusão social em nossos dias. Não nos compete enumerá-los todos aqui. Por muito tempo os pobres apareceram como foco das políticas de inclusão social. Hoje, além deles, novos atores sociais se organizam para dar visibilidade a outros grupos socialmente marginalizados, como negros, gays e lésbicas, deficientes físicos, sem-terra, mulheres, idosos, imigrantes, etc. Para além do histórico descaso político, essas minorias precisam enfrentar um mundo de representações sociais preconceituosas presentes no cotidiano, o que torna suas vidas mais difíceis. Concordo plenamente com o pastor Luis Longuinni Neto quando dizia que “a sociedade é conservadora”. Neste caso, as políticas públicas de inclusão desses grupos dão conta daquilo que a persuasão informal não consegue dar.
Tensionamentos frente aos poderes desumanizadores
Este é o outro lado da luta por inclusão dos excluídos. No centro da mensagem bíblica está o que eu chamo de “teologia da cruz”. A cruz é um NÃO! frontal à proposta da nova sociedade chamada “reino de Deus”. A cruz é o produto do tencionamento com aqueles poderes que se interpuseram a este projeto. A cruz tornou-se o emblema maior da cristandade. Mas poderia ser usada também como emblema maior de todas as visões de mundo e de todas as práticas excludentes, sejam oriundas da economia, da política, da religião, que não permitem que o ser humano goze a vida com liberdade e plenitude. Mais do que qualquer outro símbolo, a cruz ratifica que não existe conquista dos excluídos que não passe pela luta e pelo tensionamento. Não existem conquistas dos excluídos que sejam concessões dos opressores. A cruz, portanto, também é o símbolo da manutenção do status quo. Ela é aquele item da teologia bíblica que recorda a dimensão do tensionamento presente em qualquer projeto humanizador.
Michel Foucault dizia que “a política é a continuação da guerra por outros meios”. Sem rodeios, isso é uma verdade literal. É impossível fazer política sem tensionamentos. Como um critério bíblico-teológico, isso nos alia a todo projeto político que assuma tensionamentos explícitos contra alvos explícitos, flagrantemente responsáveis pela manutenção do atraso na sociedade. Um projeto político-partidário, nessa ótica, não pode corroborar as vontades e estratégias de setores que mais exploram do que beneficiam a população. No universo do trabalho e da economia essa é uma realidade cotidiana. Há casos, como o alagoano, em que a elite política quase sempre é a mesma elite econômica, onde o Estado, como diria um economista local, é somente o guarda-chuva das intenções econômicas dessa mesma elite. Esse é um item delicadíssimo atualmente, uma vez que a idéia de “estado mínimo” tem sido vendida como condicio sine qua non para os investimentos econômicos em certos lugares.
Dialogicidade e respeito à alteridade
A pesquisa teológica, sobretudo a exegética, vem demonstrando o quanto a Bíblia é produto de diálogos interculturais. Não poderia ser diferente. Como expressão de uma determinada cultura, e em comum com todas as culturas, os diálogos, as aproximações e apropriações, os sincretismos e os tensionamentos, também estão implicados na formação da Bíblia como texto religioso. Não há cultura que baste a si mesma. A dialogicidade e a presença da alteridade chegam aparecer de forma nua nos textos bíblicos. Abraão, patriarca da fé de Israel, é um caananita. Outra caananita entra na genealogia de Jesus. Códigos religiosos e legais explicitamente pertencentes a outras culturas, são apropriados por Israel e anexados à sua vida social e religiosa. Gêneros literários amplamente presentes nas culturas do entorno dão forma aos escritos judaicos presentes no Antigo Testamento. A própria atitude Jesus frente a elementos de culturas vizinhas pode ser compreendida como expressão de dialogicidade e de respeito à alteridade.
Dialogicidade e respeito à alteridade só são possíveis onde existe plena consciência dos próprios limites e imperfeições. Do contrário, para que dialogar e ouvir o outro quando estou convencido de minha perfeição e impecabilidade? Dialogicidade e respeito à alteridade, portanto, são prerrogativas do sujeito que é crítico, mas sobretudo autocrítico.
Dialogicidade e respeito à alteridade são bons critérios bíblico-teológicos na escolha de qualquer projeto político-partidário. De cara, isso exclui todos aqueles projetos governistas tipicamente sectários, formados por plataformas antidialógicas que mais lembram certas igrejas que propriamente partidos políticos. A capacidade de diálogo, por vezes de concessão mesmo, deve ser uma virtude política de primeira ordem. Aqui entra a necessidade de avaliação das alianças partidárias, tão incompreendidas e tão pouco aceitas por tanta gente. De fato certas alianças políticas podem ser tacitamente vistas como inaceitáveis. Porém, avaliando a questão um pouco mais a fundo, a pluradidade ideológica que uma composição política pode proporcionar também pode funcionar como elemento de crítica constante dos projetos particulares de cada partido.
O papel da oposição, como tem mostrado reiteradamente a história, não é a crítica: é opor-se! Composições plurais e alianças partidárias, se não forem somente produto da vontade de franquear poderes e cargos, podem cumprir essa função da dialogicidade e da crítica, de que nenhum projeto político está isento.
Menos paternalismo e mais aposta no capital humano
Finalmente, também é permitido dizer que a Bíblia é um livro marcado por uma visão otimista no que diz respeito às potencialidades humanas. Mais do que isso, ela mesma é produto dessa realidade. Ela é produto de comunidades perseguidas, oprimidas, excluídas. Tendo sido produzida nessas condições de adversidade, é razoável que ela espose uma atitude otimista diante da vida. Na contramão de um preconceito muito comum e com cara de ciência, que infantiliza o crente por conta de sua fé, na Bíblia as situações de encorajamento do ser humano enquanto potencializador de sua própria história são abundantes. Acerca disso, Émille Durkheim reconheceu que o crente que “entrou em comunhão com Deus não é apenas uma pessoa que aceitou novas verdades sobre a vida. Além disso, ele é alguém que se tornou mais forte que as demais pessoas, e mais apta a conquistar as intempéries da vida”. Em palavras simples, diríamos que a fé, no lugar de alienar o ser humano, pode ser um elemento que potencializa suas virtudes latentes.
Que implicação isso pode ter na escolha de um projeto político-partidário? Não são justamente as ações assistencialistas as mais alardeadas na propaganda política como feitos inestimáveis de partidos e governos? O que pouca gente sabe é que a maioria dos programas assistencialistas são todos eles mantidos por “resíduos orçamentários”. Eles não compõem a prioridade orçamentária de nossas políticas públicas de assistência social. Precisaríamos inverter essa equação, e fazer das políticas ligadas a ações de formação humana uma prioridade orçamentária. Usando a metáfora do povo, esse critério bíblico-teológico nos identificaria com aqueles projetos político-partidários que privilegiassem o “ensinar a pescar” em relação ao “dar o peixe pronto”.
***
Difícil é ter esperança de encontrar projetos concretos que encarnem esses valores. Mas uma coisa é certa: guiar-se por esses critérios tem seu benefício prático. No mínino, eles nos ajudam a depurar projetos inconseqüentes e inconsistentes com nossa visão de mundo. No mais, talvez nos aproximem daquele que seja o menos pior (sic).
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
RESENHA DE "POR QUE A PSICANÁLISE?"

RESENHA DE
POR QUE A PSICANÁLISE?
de
Elisabeth Roudinesco
Elisabeth Roudinesco é francesa, historiadora e psicanalista, além de ser professora na Universidade de Paris-VII e vice-presidente da Sociedade Internacional de História da Psicanálise. É também autora de vários livros na área de história da psicanálise. Por que a psicanálise? teve sua primeira publicação na França em 1999, e foi publicado no Brasil no ano 2000 pela editora Jorge Zahar, tendo sido traduzido por Vera Ribeiro. A edição brasileira tem 168 páginas. A obra está dividida em três seções, cada qual contendo quatro capítulos, o que contabiliza o número final de doze capítulos.
Roudinesco conseguiu a difícil tarefa (nem sempre bem sucedida por inúmeros autores) de situar o grande público numa discussão de alto nível. Seu texto é fluente, simples e didático, facilitando em muito a compreensão das idéias nele desenvolvidas. Embora seu tema envolva aspectos técnicos como, por exemplo, a questão dos psicofármacos e os documentos norteadores da atuação clínica (como o DSM), sua linguagem é livre de tecnicismos, e em todo o tempo é nítida a preocupação de tornar a discussão acessível mesmo àqueles que nunca foram introduzidos na temática. A autora promove, além disso, uma franca discussão com posições antagônicas às suas, citando autores e obras que podem ser consultados a contento, evitando aquele diletantismo freqüente entre os intelectuais de afrontarem “conceitos puros”, sem discernir-lhes a fonte.
Em termos conteudísticos, a leitura das primeiras linhas deixa evidente que se trata de uma defesa da psicanálise. Seu livro pode ser resumido como uma tentativa de defesa da plausibilidade da teoria freudiana na contemporaneidade em meio ao imperialismo da indústria farmacológica e em meio a uma sociedade mais afeita aos tratamentos psíquicos de curto prazo. Nesse sentido, sua defesa da psicanálise é, por que não dizer, apaixonada. Toda sua argumentação caminha na direção da pergunta que marca o título do livro: por que a psicanálise? O esforço da autora consiste, portanto, em responder a essa questão da seguinte maneira: porque a psicanálise, a despeito das contestações que lhe vêm de diversas frentes, parte do pressuposto de que as desordens psíquicas devem ser tratadas a partir de suas causas mais profundas, sobretudo as inconscientes, não se conformando com a ação meramente paliativa de nível neuronal e farmacológico. Além desse centro em torno do qual gira esta obra, o leitor pode encontrar aí uma instigante reflexão sobre a situação da psicanálise nos dias atuais. É, portanto, um ótimo texto introdutório que contribui tanto para aqueles que já lidam profissionalmente com essa ciência, quanto para aqueles que enfrentam agora o período de formação teórica nessa área, assim como para aqueles que nunca tiveram iniciação formal com ela, mas interessam-se na questão de sua pertinência ou impertinência. Sem dúvida, é um livro obrigatório para todos os que se interessam nos dilemas mais profundos pelos quais tem de passar o ser humano.
Se Zygmunt Bauman estiver correto quanto adjetiva esse período histórico como tempos líquidos e como modernidade líquida, os desafios que se põem frente à psicanálise descritos por Roudinesco, embora sejam enormes, não deverão surpreender a ninguém. É verdade que nossos tempos são marcados pela fluidez e pela volatilidade de todos os valores, alimentados pela terrível inclinação ao imediatismo como marca de um ser inquieto e ansioso. Na sociedade de consumo, onde os desejos humanos são regulados pelas demandas do mercado, perdem sentido as experiências de profundidade, sobretudo quando se trata das questões mais íntimas da subjetividade humana. Esses tempos trazem como marca a satisfação rápida e contínua de uma torrente de desejos que não cessam de se renovar ao toque de caixa do mercado. Em outras palavras, o atual centro regulador da maioria das atividades humanas – o mercado –, coopta aos seus interesses todas as necessidades e carências da experiência pessoal, mormente nas sociedades ocidentais.
A meu ver, Roudinesco oferece uma pertinente avaliação das razões estritamente científicas de contestação da indústria farmacológica à psicanálise. No entanto, penso que as razões dessa contestação podem ser lidas também à luz dos entraves político-econômicos que marcam esse período**. É preciso afirmar, portanto, que o imperialismo dos psicofármacos é mais uma expressão de uma interessante amálgama produzida pelas imposições do capital. Essa amálgama envolve aspectos antropológicos, sobretudo quando se dirige ao homem cujo ser é definido pela capacidade de consumo e pela fluidez de toda experiência, além de envolver aspectos econômicos, quando se trata de sustentar uma indústria que vive à base daquela antropologia. Em outras palavras, a indústria medicamentosa sobrevive e se alimenta de uma imagem de homem que o mercado produz: inquieto, ansioso, consumista e imediatista. Dessa forma, elementos antropológicos e econômicos estão totalmente imbricados.
Que outros epítetos poderia ter um saber como a psicanálise nesse contexto? Como não poderia ser adjetivada de anacrônica e ultrapassada nessa sociedade líquida, marcada pelo consumo, pelo imediatismo e pela superficialidade? Como poderia insistir no seu discurso clássico de lidar com as bases mais profundas do ser humano, quando este só reconhece como pertinente as experiências voláteis que se lhe apresentam um dia após o outro? Como poderia sobreviver em paz se não corrobora essa imagem antropológica do homo consumens, e se não corrobora a manutenção de um dos braços do capital – a psicofarmacologia? Não resta dúvida de que esses são tempos decisivos para a sobrevivência desse saber profundamente identificado com o ser humano, sobretudo com suas questões mais íntimas e profundas, negadas vilmente por nossa atual conjuntura.
___________
ROUDINESCO, Elisabeth (2000). Por que a psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
** Mas também é verdade que a autora tenha sinalizado ligeiramente este aspecto, e que essa discussão não tenha sido o foco de seu livro.