quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ENTRE O VAREJO E O ATACADO, A VIDA


É inegável que quanto mais nos submergimos no mundo das letras e da ciência, menos leves vamos ficando. Nietzsche já se preocupava com esse assunto. Vamos ficando mais duros, mais fechados, mais altivos e até os de nariz chato sentem um leve empinar. Não é regra geral, mais é uma média considerável. Perante o acúmulo de conhecimentos vamos ficando mais metidos, pretensamente sabedores das coisas, e já sentimos certa inconformidade com o antes tão natural “senso comum”.

Descartes e Popper, dois filósofos que militaram em frentes tão distantes tanto do ponto de vista do tempo quanto do ponto de vista ideológico, concordam que o acúmulo de conhecimentos deve nos conduzir numa direção bem oposta do que comumente vemos. Ambos concordam que quanto mais nos enriquecemos intelectualmente, mais humildes devemos nos tornar. Ambos justificam semelhantemente sua posição: quanto mais progride nosso tesouro intelectual, maior ainda se torna o tamanho de nossa ignorância. Quanto mais sabemos sobre o mundo, maior aumenta o mistério do mesmo.

Quanto mais vai crescendo nossa percepção científica das coisas (falo em sentido lato, tanto em relação às Ciências Humanas quanto às Naturais ou Formais), mais tendemos a nos distanciar das questões ordinárias com as quais lidamos no cotidiano. Não sei por que, mas as “grandes preocupações” da ciência acabam por transformar em “pequenas preocupações” aqueles fatos da lida diária nos quais nos movemos.

De repente, importantes para nós são somente as questões de conjuntura política ou econômica, por exemplo. De repente, o indivíduo some de nossa linguagem. Dá o lugar ao estéril “social”, que ao querer enredar a todos não enreda ninguém. Foi-se o mundo do dia a dia, com seus problemas, suas questões próprias, suas alegrias, desafios e tristezas.

Até que uma catástrofe nos ocorre, ou a alguém de nosso círculo íntimo. Então voltamos para o mundo onde a vida das pessoas, uma a uma, volta a ser tão grande quanto as grandes questões conjunturais. Então lembramos que não podemos reduzir o mundo a um grande atacado. Há nele um varejo que não pode ser desprezado.

***

Ela anda bastante aflita. Sua mãe está doente. Sua irmã foi fatalmente vitimada pela mesma doença. Morreu aos trinta anos de idade. Agora, a situação de sua mãe traz de volta a angústia do tempo em que sua irmã sofreu com o enfrentamento da enfermidade. Ela é crente. Adulta, independente e feliz. Mas os últimos exames médicos de sua mãe sacudiram seu chão. “Tudo outra vez”, foi o primeiro raio de pensamento que lhe veio à mente.

Tive que voltar para o mundo onde a vida das pessoas se desenrola concretamente. Pude ver como é difícil dizer alguma coisa aí quando só queremos pensar em conjuntura político-econômica. Como é difícil dizer alguma coisa boa aí quando só queremos pensar no método científico, ou em metafísica ou em ontologia. Deveríamos ouvir mais a Fernando Pessoa, que dizia que “há muita metafísica em não pensar em nada...”. Vi que fiquei meio vesgo nesse canto a vida, e que quanto mais minha visão cresce em profundidade – que é a tarefa das ciências – mais ela perde em extensão. Esses cantos da vida querem ouvir também a nossa palavra. Mas aí as palavras polidas e refinadas desses “saberes superiores” da ciência mostram os seus limites. Elas simplesmente não fazem o menor sentido nesses cantos onde a vida geme, onde o corpo enfrenta seus limites biológicos, onde a própria vida reclama por sentido, onde suamos frio à noite e pressentimos a morte. Calam-se os cientistas. Fala o povo com aquilo que o povo tem: o coração...

Nessa hora, se o estudioso for esperto o bastante, volta a ser povo.

Voltam-lhe os significados da fé, a irmandade com o senso comum, e a palavra doce e terna que traz alento ao sofrimento da vida. Volta-lhe a dimensão pessoal e singular de cada indivíduo. Volta-lhe a convicção de que cada pessoa, com sua dor e seu sofrimento, com sua alegria e seu carisma, é tão importante quanto o mundo inteiro que vive de conjuntura político-econômica. Volta-lhe a sensatez de pensar sobre conjuntura político-econômica nos artigos, nas palestras e nos fóruns, ao mesmo tempo em que pensa nas pessoas, uma a uma, e no universo de fatos bons e ruins em que cada uma delas está submersa. Se freqüenta o poço da fé e da esperança, o estudioso, mesmo o apaixonado por conjuntura político-econômica, terá sempre uma palavra que seja pertinente às dores de cada pessoa com quem se relaciona.

Honestamente, prefiro ser ouvido (ou quem sabe também ouvir) por alguém que sofre e dizer-lhe alguma palavra do povo, do que somente dizer alguma palavra da ciência sobre conjuntura político-econômica quando sei que aí é muito mais difícil ser ouvido. Mas fazer ambas as coisas também não é nenhum pecado.

Um comentário:

Thiago Barros disse...

Paulão, aqui é Thiago da psicologia. O blog ta ótimo, espero que você se empolgue e não pare de postar nele...
abraçosss