Fé é uma pestana no meio da tempestade
É debruçar a vida inteira num toque sutil nas vestes de um camponês
É imolar no altar o produto do desejo de toda uma vida, em seu eclipse
É tornar-se errante no deserto
Fé é trocar o santo ofício da sinagoga pela loucura do Caminho
É estar em Nínive querendo-se estar em Tarsis
É, em terra infértil, comer pão e não estocar para o dia seguinte
É comprar um sítio no campo durante um cerco à minha cidade
Fé é apostar que a maldade dos algozes é produto de ignorância
É oferecer o bocado molhado ao futuro traidor
É ver a Deus... No banal... Numa sarça que queima no deserto
É a recriação de todas as coisas que se inicia num barco com gente e bicho
Fé é cantar agora, antes da hora, a queda de todas as Babilônias
É a pequena comunidade fraterna, fragmento de um futuro incerto
É o entregar da última e única moeda
É a intuição de quem viu os pardais e os lírios do campo na agenda da Graça
Fé é um pequeno cajado contra um mar possivelmente vermelho... Em sangue
É o papo entre iguais na beira do poço sagrado
É orar desde o ventre da existência, nas profundezas da vida
É se irmanar dos leprosos
Fé é tagarelar teologia em Atenas
É engravidar pelo ouvido e gestar em si a esperança de todo um mundo
É desafiar um Império e calejar as mãos fazendo tendas
É tudo encomendar à paz de um crucificado... A despeito da pax romana
Fé é o recolher das escamas que caem dos olhos na mesa da comunhão
É o caminhar de uma coxa ferida por Deus
É a súplica derradeira de um cego num templo pagão
É ver um universo num grão de mostarda
Fé é suportar as flechas venenosas do Altíssimo sorvendo a alma
É a comida no bico de um corvo e o sopro suave de uma brisa à tarde
É o revisar da vida no centro de um redemoinho
É riscar a vingança até do Texto Sagrado
Fé é salmodiar em terra estranha, em exílio
É ser vendido pelos irmãos e não vender-se nunca... Nunca...
É o óleo que desce pelas barbas do ancião
É a louca fidelidade à Graciosa que se tornou Amargurada
Fé é a dança irreverente e doida do Rei
É a pureza terapêutica do barro e do lodo
É uma cidade santa, mas sem templos
E um mundo novo, sem lágrimas...
Paulo Nascimento
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