quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

FÉ...



Fé é uma pestana no meio da tempestade

É debruçar a vida inteira num toque sutil nas vestes de um camponês

É imolar no altar o produto do desejo de toda uma vida, em seu eclipse

É tornar-se errante no deserto


Fé é trocar o santo ofício da sinagoga pela loucura do Caminho

É estar em Nínive querendo-se estar em Tarsis

É, em terra infértil, comer pão e não estocar para o dia seguinte

É comprar um sítio no campo durante um cerco à minha cidade


Fé é apostar que a maldade dos algozes é produto de ignorância

É oferecer o bocado molhado ao futuro traidor

É ver a Deus... No banal... Numa sarça que queima no deserto

É a recriação de todas as coisas que se inicia num barco com gente e bicho


Fé é cantar agora, antes da hora, a queda de todas as Babilônias

É a pequena comunidade fraterna, fragmento de um futuro incerto

É o entregar da última e única moeda

É a intuição de quem viu os pardais e os lírios do campo na agenda da Graça


Fé é um pequeno cajado contra um mar possivelmente vermelho... Em sangueampo na agenda da Graçail barco com pessoas e animaiseclipse

É o papo entre iguais na beira do poço sagrado

É orar desde o ventre da existência, nas profundezas da vida

É se irmanar dos leprosos


Fé é tagarelar teologia em Atenas

É engravidar pelo ouvido e gestar em si a esperança de todo um mundo

É desafiar um Império e calejar as mãos fazendo tendas

É tudo encomendar à paz de um crucificado... A despeito da pax romana


Fé é o recolher das escamas que caem dos olhos na mesa da comunhão

É o caminhar de uma coxa ferida por Deus

É a súplica derradeira de um cego num templo pagão

É ver um universo num grão de mostarda


Fé é suportar as flechas venenosas do Altíssimo sorvendo a alma

É a comida no bico de um corvo e o sopro suave de uma brisa à tarde

É o revisar da vida no centro de um redemoinho

É riscar a vingança até do Texto Sagrado


Fé é salmodiar em terra estranha, em exílio

É ser vendido pelos irmãos e não vender-se nunca... Nunca...

É o óleo que desce pelas barbas do ancião

É a louca fidelidade à Graciosa que se tornou Amargurada


Fé é a dança irreverente e doida do Rei

É a pureza terapêutica do barro e do lodo

É uma cidade santa, mas sem templos

E um mundo novo, sem lágrimas...


Paulo Nascimento

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