quarta-feira, 16 de setembro de 2009

400 ANOS DE AMBIVALÊNCIA: E DAÍ?

Virtudes e vexames históricos entre os Batistas no Brasil e no mundo

Introdução

Eu gostaria de continuar a refletir sobre a vida das comunidades cristãs Batistas, aquecido pela luz de seus 400 anos de história no Ocidente. Mas seria necessário antes prever alguns riscos que não mencionei no artigo anterior. O maior deles é o risco da generalização. Os Batistas têm uma sólida presença em todo o mundo. Portanto, todo cuidado é pouco a fim de não se rotular, como quer que seja, o todo em função da parte. Por exemplo, como batistas brasileiros (já enormemente plurais em tudo!), não podemos projetar nossas idiossincrasias para a totalidade dos batistas no mundo. Não uniformizemos conceitualmente aquilo que é múltiplo na vida!

Portanto, nas considerações a seguir procurarei levar isso em conta. Mas não excluímos a possibilidade de que nossa experiência no Brasil permita alguma generalização para outros cantos. E no fim das contas é isso mesmo que queremos: um quadro mais ou menos geral. Afinal, o aniversário de 400 anos é dos Batistas em todo o mundo.

O que eu desejo nesse artigo é ser menos descritivo que no anterior, e problematizar sobre alguns desafios que se põem diante dos cristãos e das comunidades batistas nesse quadrante histórico. Então minha argumentação se dará sob o seguinte esquema: (I) vou tentar identificar na dinâmica desses grupos, elementos que considero de natureza progressista, isto é, elementos que sejam virtudes históricas que podem servir como proposições para a própria sociedade; e (II) vou tentar identificar também na dinâmica desses grupos elementos que considero de natureza retrógrada e reacionária, isto é, elementos que sejam vexames históricos a serem relativizados junto à própria sociedade. Numa palavra, esse tipo de reflexão poderia ser definido como estudo das ambivalências inerentes a uma [e à toda] formação institucional-religiosa.

Nesse primeiro momento, (1) me focarei no tema da democracia radical como forma de organização das comunidades batistas, identificando nisso um elemento progressista e de poder propositivo para a sociedade. Depois, (2) discursarei sobre o tema da cultura patriarcal, vendo na teologia e na vivência religiosa dos batistas um dos vetores dessa cultura no ocidente, e, portanto, como elemento retrógrado a ser relativizado no diálogo com a sociedade.

A idéia de “democracia radical” como virtude histórica e proposição para a sociedade

Conforme sua proposta organizacional e tradicional, as comunidades Batistas devem ser regidas sob o princípio de uma democracia radical. Isso advém, como tentamos dizer no artigo anterior, de sua compreensão acerca do ser humano como sujeito feito à imagem de Deus, portador de uma dignidade subjetiva e de uma liberdade de consciência inalienável por quem quer que seja – instituição eclesiástica ou estado. Foi por isso que Israel Belo de Azevedo deu à sua tese de doutorado acerca da formação do pensamento dos batistas brasileiros o título de A celebração do indivíduo.

Nisso os Batistas se adiantam em muito a uma democracia representativa como modelo político-governamental consolidado em boa parte das repúblicas ocidentais. O centro do governo e do direcionamento da vida comunitária batista é cada sujeito. Essa democracia radical como forma igualitária do exercício do poder não deve ser relativizada nem mesmo pelos “oficiais do culto” – pastores, pastoras, diáconos e diaconizas. A relação que esses devem manter na dinâmica comunitária é muito mais operacional e instrumental que uma relação hierárquica e de poder sobre os demais. Dito mais claramente, a densidade do poder decisório numa comunidade batista deve ser radicalmente igualitária entre seus membros, incluindo os seus dirigentes.

[É sempre oportuno lembrar que o diferencial do pastor e da pastora batista não é o status do poder, mas o status da arte de cuidar.]

Historicamente, parece ser uma tendência entre os batistas atribuir suas crises internas à fraqueza dessa democracia radical. Centra-se a atenção, nesses momentos de crise, nos abusos que podem advir de tamanha igualdade no exercício do poder. E eles existem mesmo! Esse texto se tornaria extenuante se nos puséssemos a enumerar todas as possibilidades e abusos que advém da partilha radical do poder numa comunidade, qualquer que seja sua natureza. Dessa maneira, há entre nós muito lamento em torno dessa democracia radical. E há inclusive quem a identifique como a raiz fundamental de toda crise entre os batistas brasileiros. Mas eu teria duas objeções ligeiras a essa postura.

Primeiro, eu diria que é sempre bom suspeitar de toda investida que vise a centralização do poder, em qualquer atividade humana. Em conseqüência disso, acho salutar a resistência a todo projeto explícito de concentração do poder, já que suas marcas são inevitavelmente a estratificação das pessoas e a subjugação de uns aos interesses de outros. No nosso caso batista, voltar às formas de regulação comunitária assentadas na centralização de poder é um retrocesso escandaloso e inaceitável. Segundo, as democracias republicanas ocidentais, marcadas por uma interessante variação da democracia que é a representativa, vêm paulatina e eloquentemente nos convencendo de que em toda variação do exercício democrático do poder existem riscos a assumir. E o mais popular deles – tão freqüente no Brasil – é o risco da representatividade tornar-se uma falácia e uma ilusão (em caso de dúvidas, vide nosso Senado!).

Com efeito, vou tentar justificar sucintamente porque adjetivei a democracia radical dos batistas de progressista, e em que ela é uma proposição para a sociedade.

Antes, uma rapidíssima palavra sobre o próprio sentido de progressista aplicado aqui.

Idéias e práticas devem ser consideradas progressistas quando elas propuserem elementos que se mostrem à frente dos estreitamentos de sua época. Quando elas se prestem a aperfeiçoar sempre e mais as formas de convívio humano, e se contraponham àquelas que oprimem e servem aos interesses de uns poucos. Nisso, consideramos a idéia de democracia radical da organização das comunidades batistas (talvez não a prática histórica da mesma) profundamente propositiva para a organização política de nossas sociedades ocidentais.

Como eu já afirmei, essa democracia radical é progressista porque se assenta numa concepção do ser humano profundamente positiva. O que lhe subjaz é uma afirmação das potencialidades que todas as pessoas têm de, vivendo em comunidade, organizarem-se de uma maneira que seja ética para todos. Essa noção do ser humano é profundamente progressista se comparada aos modelos de organização política, jurídica e religiosa, por exemplo, comuns em nossas sociedades. A maioria dessas últimas está fundada numa noção estratificada das pessoas. Há aqueles com credenciais para dirigir e aqueles com credenciais para serem dirigidos. Há aqueles para quem certas leis têm uma validade relativa (políticos, magistrados, portadores de curso superior, por exemplo) e aqueles para quem essas mesmas leis têm validade radical (o cidadão “comum”). Pensem, por exemplo, em todas as inimputabilidades e privilégios políticos e legais de que gozam por lei nossos governantes e magistrados. Elas não se baseiam numa concepção estratificada e meritocrática do ser humano?

A organização democrática radical dos cristãos batistas, por sua vez, funda-se unicamente na convicção de igual status humano de que as pessoas gozam como filhos e filhas de Deus. Não há elementos meritocráticos para estratificar o exercício do poder. É na simples pertença à condição de filhos e filhas de Deus que os batistas ancoram sua organização democrática radical.

Tal democracia radical deve ser adjetivada como progressista também pelo fato de assistirmos hoje (com muita felicidade, por sinal!) a uma reprodução da mesma na esfera pública, ainda que a passos muito lentos. Vocês não conseguem enxergar isso no movimento que a sociedade civil vem fazendo, no sentido de caminhar para formas mais participativas da administração pública? Pois é assim que interpreto, por exemplo, os Conselhos Municipais de Saúde e Educação, os conselhos responsáveis pelo Orçamento Participativo, isto é, todos os Conselhos Gestores que são mecanismos de participação popular nas decisões administrativas dos governos nacionais, estaduais e municipais. Oxalá o transcurso da história reserve para nós a possibilidade de vermos surgir mecanismos cada vez mais comprometidos com a participação popular na administração da vida pública. E oxalá nos eduquemos cada vez mais para essa democracia radical.

Não seria esse também o remédio ideal para a crise institucional dos batistas? Em lugar de retroceder até formas aristocráticas do (ab)uso do poder, não seria o caso de voltarmos a nos educar para a democracia radical em matéria de religião?

A “cultura patriarcal” como vexame histórico e ser relativizado junto à sociedade

No meio dos meus interesses sobre o estudo da ideologia, uma preocupação que me ocupa é a seguinte: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas são instrumentos ideológicos para engendrar nas pessoas uma falsa consciência sobre a vida? Penso que essa é uma pergunta capital para pastores, pastoras, teólogos e teólogas, e não somente para os psicólogos sociais e sociólogos críticos.

Em relação ao nosso tema de agora, a pergunta ganha a seguinte versão: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas criam e consolidam noções opressoras nas relações de gênero?

Embora eu veja a discussão sobre a ordenação de mulheres ao ministério pastoral como um tópico central desse debate, não me circunscrevo a esse tema quando falo das opressões nas relações de gênero. Nos últimos anos, a ordenação feminina entrou na pauta como tema candente desse tópico maior. Somente há 10 anos ordenamos, sob muita tensão e resistência, a nossa primeira pastora batista. Mas existem outros tantos problemas advindos dos discursos e das práticas de gênero entre os batistas que permanecem na obscuridade, e que dificilmente ganharão visibilidade já que estão naturalizados entre nós pela via de uma teologia e de uma catequese tradicionalista e perene. Não obstante a isso, vou me aferrar somente ao tema da ordenação de mulheres ao pastorado, pois ele é suficiente enquanto exemplo de toda uma cultura religiosa ainda atrelada a uma cosmovisão patriarcal.

Uma advertência prévia, todavia, se faz necessária: a luta geral pela “libertação das mulheres” e a luta específica pela inserção das mesmas no ministério pastoral batista não se faz como uma espécie de reprodução das tendências da sociedade pós-moderna. Nos acalorados debates sobre a temática essa é uma acusação muito recorrente. Aí, o “liberalismo inclusivista” em relação à inserção das mulheres no pastorado é interpretado como concessão e como adequação à cultura vigente, como se dependêssemos disso para a credibilidade das pessoas. Para sobreviver e ter espaço na cultura atual, dizem os acusadores, tais “liberais” querem fazer concessões a esta. E como a inclusividade das mulheres no mundo trabalho é um dos valores dessa cultura, sua versão religiosa seria a inserção dessas no ministério pastoral. Eu desejo relativizar tal visão das coisas.

A inserção das mulheres no ministério pastoral entre os batistas, em lugar de ser uma concessão à cultura atual, deve ser vista como produto de uma releitura do próprio Evangelho, sobretudo na maximização existencial deste como temos em Jesus de Nazaré. Deve ser vista como fidelidade ao próprio Evangelho, que em si mesmo é o melhor contraponto à cultura patriarcal de que temos notícia desde o fim da Antiguidade Clássica.

A inserção das mulheres no ministério pastoral batista nos põe diante da interessante questão: Que é ser cristocêntrico? O enfrentamento honesto dessa questão, pelo menos entre os batistas brasileiros, deveria nos conduzir à outra questão: É possível ser cristocêntrico na pregação e não sê-lo nas relações todas que construímos na vida? E mais essa: Estamos de fato sendo cristocêntricos quando não reproduzimos em nossas relações de gênero a atitude de Jesus de Nazaré? Ou: Estamos sendo cristocêntricos quando excluímos as mulheres do exercício do ministério pastoral? Se o fundamento antropológico da democracia radical é o status comum que temos como filhos e filhas de Deus, que fundamento antropológico está por trás da segregação das mulheres ao pastorado? Não é contraditório assumir o status comum de ser humano numa situação (política comunitária) e negligenciá-lo em outra similar (ordenação feminina)? O status comum que gozamos como filhos e filhas de Deus não deveria ser oni-abrangente? O Evangelho responde a essa última questão com um alegre e novo Sim! Na sua linguagem ele afirma: “O Espírito foi derramado igualmente sobre homens e mulheres!” (At 2,18).

Notem que em todo meu esforço para fundamentar uma atitude inclusiva das mulheres no pastorado não me remeti à cultura moderna, nem mesmo ao movimento feminista! E nem o farei! Isto porque não estou bem certo de que temos aí uma libertação das mulheres em sentido radical. Talvez essa libertação esteja circunscrita ao Capital e suas necessidades. Tenho suspeitas de que os novos espaços ocupados pelas mulheres em nossa cultura não sejam somente produtos de uma conquista articulada das mesmas, mas possam ser também fruto das imposições do Capital que impõe novas configurações no mundo trabalho a cada década. Desconfio de que certas pontencialidades próprias do universo feminino – culturais ou geneticamente herdadas, não sei – sejam propícias à certas necessidades do Capital nesse quadrante histórico, e que tamanha inserção das mulheres no mundo trabalho possam estar relacionadas também a isso. Mas são somente desconfianças, e não certezas.

De todo jeito, quer essas mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres sejam fomentados pelas necessidades do Capital, quer pela luta articulada das próprias mulheres, em termos práticos o que temos é uma paridade de funções que deve ser o prelúdio de uma generalização para todas as relações sociais. Homens e mulheres permanecem idiossincraticamente diferentes, mas idênticos nos direitos e nas relações mútuas que estabelecem entre si, sobretudo idênticos quando se trata de gerenciar a vida. Dessa maneira, ainda que a inserção das mesmas seja de fato uma artimanha do Capital, ela serve como sinalização para aquilo que o Evangelho já havia postulado: o status comum que homens e mulheres devem ter na administração do mundo. Então, não pegamos carona na cultura moderna com nossa inclusividade das mulheres. O que fazemos é, por meio de sua sinalização, voltarmos ao Evangelho que com outras motivações já dizia que homens e mulheres são igualmente dignos de acolher o dom da vida. Por isso, não existem dissimetrias de qualquer espécie entre eles. Ninguém é cabeça de ninguém!

Conclusão

Na verdade, ainda não está na hora de concluir. Seguindo o mesmo esquema desse artigo, eu desejaria ainda dizer alguma coisa sobre outro par formado por um elemento progressista e um retrógrado entre os batistas brasileiros. Mas aí esse texto ficaria mais longo do que eu gostaria. Portanto, desejo prosseguir essa reflexão pensando ainda na (3) liberdade e na pluralidade como resistência ao controle institucional e ideológico presente entre os batistas brasileiros como outro elemento progressista de sua mentalidade e de sua prática. Depois, desejo pensar sobre a (4) pretensa neutralidade política como mais um elemento retrógrado de suas convicções ideológicas.

Não obstante, acredito que esse brevíssimo exercício reflexivo deva ter servido para nos provar que a ambivalência é algo próprio das instituições religiosas, e que a melhor atitude entre nós é assumi-la com honestidade, e pensar com a mesma honestidade nos melhores meios de minimizá-la. De outra forma, eu também desejava rechaçar a um certo maniqueísmo comum até a gente bem instruída, para quem as instituições religiosas compõem as “forças malignas da história” na luta contra as “forças benévolas” – entre as quais a própria Ciência desses instruídos. Fazendo assim – isto é, discernindo e trabalhando nossa ambivalência –, ganha a sociedade como um todo, e nós como grupo religioso em específico.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LIBERDADE, PLURALIDADE E FRATERNIDADE


Uma meditação sobre os 400 anos de história dos Batistas


Introdução

O ano de 2009 vem marcado pelo arredondamento de datas importantes da história do Ocidente.

Por exemplo, nesse ano completam-se 220 anos da Revolução Francesa de 1789 como a tentativa de construir uma sociedade alicerçada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em 1899, há 110 anos, Freud concluiria sua A Interpretação dos Sonhos, que daria impulso significativo à Psicanálise, ainda que a obra tenha sido publicada um ano depois. A crise econômica mundial deflagrada com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 completa 80 anos. Assim como o início da Segunda Guerra Mundial em 1939 e suas nefastas conseqüências completa 70 anos. Já se vão exatos 50 anos desde a Revolução Cubana que em 1959 pôs Fidel à frente daquela ilha. Também em 1959, há 50 anos, meu Bahia seria campeão brasileiro pela primeira vez, em cima do Santos de Pelé! Há 40 anos Neil Armstrong daria em solo lunar aquele que, segundo ele, teria sido “um pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade”, mesmo para a descrença de minha avó. Também já são 20 anos desde que em 1989 a queda do Muro de Berlim representou um duro golpe nas aspirações socialistas em todo mundo.

Para os cristãos batistas em todo o mundo 2009 chega também como uma data especial. Conforme nossa historiografia científica mais confiável, a primeira comunidade de cristãos batistas apareceria em 1609, há exatos 400 anos.

As três hipóteses sobre a gênese dos batistas

De fato, existem três hipóteses para explicar a gênese das comunidades batistas na história. A primeira delas mescla a fantasia com o sentimento de “assepsia espiritual” – que é aquela ingênua convicção de que nossa fé está isenta de hibridismos e sincretismos –, e identifica a gênese dos grupos batistas já no Novo Testamento. Ganhou a alcunha de “teoria JJJ” (João-Jordão-Jerusalém) e consiste numa espécie de “sucessão apostólica protestante”, já que supõe uma continuidade ininterrupta e incorrupta entre os primeiros batistas dos templos bíblicos e os batistas atuais. A segunda hipótese liga a gênese das comunidades batistas aos grupos anabatistas contemporâneos à Reforma Protestante do século XVI. Embora existam certas similaridades entre as ideologias desses dois grupos, há também fortes distinções entre ambas, muito embora não se descarte a possibilidade de que os primeiros batistas do século XVII tenham recebido influencia indireta daqueles primeiros.

A terceira hipótese, que é a que adotamos, nos parece ser mais coerente que as demais. Ela identifica a gênese dos grupos batistas no centro dos movimentos religiosos dissidentes da Igreja Anglicana no início do século XVII. Identifica também a gênese dos batistas com mais um dos elementos responsáveis pelo liberalismo inglês, que entre os batistas teve como grande contribuição a luta pela liberdade de consciência e pela liberdade religiosa. A coerência dessa hipótese se assenta num material empírico facilmente disponível a quem deseje: documentos religiosos como declarações doutrinárias, pactos inter-eclesiais, confissões de fé textuais, e etc. Esses são materiais empíricos importantes à investigação histórica, e que faltam nas duas primeiras hipóteses sobre a gênese dos batistas. Está claro que a credibilidade que dou à terceira hipótese se deve à cientificidade que lhe subjaz. Mas isso é muito pessoal.

Algumas peculiaridades Batistas em destaque

Os batistas são um grupo cristão com certas peculiaridades que cabe destacar.

Por exemplo, carecemos de um “patriarca” ou de uma “matriarca” que possam ser pontualmente discernidos na gênese histórica de nossa fé. Os luteranos o têm em Martin Lutero. Os presbiterianos em João Calvino. Os menonitas em Meno Simons. Os metodistas em John Wesley. Para a Assembléia de Deus, são os suecos Gunar Vingren e Daniel Berg. Para a Igreja Universal, Edir Macedo. Nesse sentido, os batistas são órfãos. É verdade que entre os que trabalham com a terceira hipótese acerca da gênese dos batistas, identificam-se nos ingleses John Smith e Thomas Helwys os primeiros pastores desse grupo religioso. Mas isso nunca foi suficiente para que esses dois líderes batistas fossem reconhecidos como “patriarcas históricos”. A prova cabal disso é o fato de que John Smith e Thomas Helwys permaneçam profundamente desconhecidos para a grande maioria dos cristãos batistas de hoje.

Outra interessante peculiaridade dos batistas é o pluralismo teológico presente já na sua gênese. Já as primeiras comunidades batistas na Inglaterra do século XVII surgiram ao redor de duas grandes tendências teologicamente distintas: os batistas gerais e os batistas particulares. Os primeiros – os batistas gerais – mais identificados com uma tradição arminiana, isto é, com uma concepção mais otimista acerca da natureza humana e com uma concepção mais abrangente acerca da salvação em Jesus Cristo, no qual todos os homens são eleitos e devem eles mesmos se posicionar diante disso. Os segundos – os batistas particulares – mais identificados com uma tradição calvinista, isto é, com uma antropologia mais pessimista alimentada pela idéia de “depravação total” da natureza humana, e com uma noção mais exclusivista de salvação, circunscrita somente àqueles a quem Deus elegeu em particular.

Muito embora essas designações tenham caído em total desuso (batistas gerais e particulares), é possível dizer que ainda hoje os batistas são caracterizados por um pluralismo teológico dificilmente encontrado em outras denominações cristãs. É nesse sentido que é melhor falar sempre em teologias batistas, e nunca numa teologia batista. Na contramão de uma postura altamente reacionária que vê no pluralismo teológico um defeito e uma fraqueza, enxergamos aí um elemento idiossincrático positivo, próprio de nossa identidade e talvez de nossa originalidade.

Esse pluralismo teológico deve ser visto como produto daquilo que constituiu a própria luta histórica dos primeiros batistas ingleses: a luta pela liberdade. E gostaríamos de ratificar que o pluralismo não é o “filho bastardo da liberdade”, mas é seu filho mais legítimo! Isso pode ser visualizado também nas próprias formas litúrgicas das comunidades batistas de ontem e de hoje. Quando o historiador batista estadunidense Walter B. Shurden dizia que “não existem duas igrejas batistas iguais”, isso deveria ser entendido radicalmente: teológica, doutrinária e liturgicamente. E não é na bibliografia religiosa que se comprova essa tese, mas na própria vida das comunidades batistas. Basta fazer o teste de visitar algumas delas e provar se isso procede ou não.

O mesmo Walter B. Shurden sintetizou a luta histórica dos batistas pela liberdade em quatro grandes eixos didáticos, que ele chamou de:

1) Liberdade da Bíblia (liberdade pessoal para interpretar Bíblia);

2) Liberdade da Igreja (liberdade para a própria comunidade religiosa organizar a si mesma);

3) Liberdade Individual (liberdade de consciência pessoal na escolha de todo tipo de ideologia, seja secular seja religiosa); e

4) Liberdade Religiosa (liberdade e equidade nos direitos de todo tipo de confissão religiosa a despeito do poder do estado).

Shurden adjetivava essas liberdades de “frágeis”, uma vez que entre os próprios batistas observam-se duas tendências negativas em face delas:

1) Os próprios batistas se retraem ante o fluxo de tamanha liberdade, uma vez que o seu produto natural é sempre um pluralismo e uma diversidade inédita no campo religioso. Nesse sentido, muitos atos inquisitórios que são realizados em nome da tradição batista, na verdade se movem contra o que há de mais idiossincrático para essa mesma tradição, que é a liberdade pessoal e eclesial;

2) Há casos em que a liberdade religiosa, conquistada à custa de muita luta pelos primeiros batistas enquanto grupo cristão marginal, é cerceada aos grupos religiosos que hoje ocupam a marginalidade. É o uso da própria liberdade para castrar a liberdade alheia.

Os batistas e a sociedade brasileira

No Brasil, os batistas têm já uma história de 127 anos. Seus primeiros missionários chegariam ao Brasil em 1882, no epicentro do missionarismo protestante estadunidense da segunda metade do século XIX. Se, por um lado, a nossa leitura desses fatos não deve perder de vista as motivações especificamente religiosas, por outro lado, nunca deveríamos nos abstrair de levar em consideração também outras aspirações desse missionarismo. Assim nossa leitura fica mais abrangente, mais integral.

De um lado, temos nesse missionarismo a continuidade do resgate da tarefa de evangelização mundial ressuscitado na Europa por Willian Carey. Por outro lado, temos nesse missionarismo uma espécie de vetor dos valores liberais-modernizantes consagrados na Europa e nos Estados Unidos, e ainda ausentes na cultura brasileira, à época marcada pelas desgastadas relações coloniais na política e na religião. Resumindo, esse missionarismo estadunidense que contaria com os batistas como uma de suas grandes representações, conseguiu amalgamar num único projeto a transformação religiosa do Brasil com sua transformação cultural – política e social. Não é por acaso que o anticatolicismo tenha sido um dos valores mais presentes para aqueles primeiros batistas brasileiros, uma vez que o atraso civilizacional do Brasil era identificado com a influência e com a hegemonia da Igreja Católica – leitura vigente ainda em nossos dias.

Anticatolicismo na teologia e proselitismo na missiologia foram os componentes do grande crescimento numérico dos batistas brasileiros até um pouco depois da primeira metade do século XX. A segunda metade do século XX trouxe aos batistas brasileiros algumas situações novas que ainda carecem de estudos científicos consistentes, tanto pelos seus teólogos quanto pelos sociólogos ou cientistas da religião. E eu vou caminhando para o fim desse artigo pontuando ligeiramente alguns desses elementos.

O primeiro deles diz respeito às respostas dos cristãos batistas em face do clima de inquietações da sociedade civil brasileira em relação aos desastres do capitalismo dependente e do “fantasma comunista” que rondava os países latino-americanos a partir da década de 1960. Permanece pouco conhecido entre os batistas brasileiros, sobretudo entre suas lideranças eclesiais, o Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963, que se constitui como excelente testemunho textual das preocupações de uma ala de pastores batistas quanto à transformação das condições sociais do nosso país. Apesar disso, faltam estudos mais precisos sobre a postura dos batistas brasileiros diante da ideologia de “segurança nacional” levada a cabo pela Ditadura Militar de 1964-1985. Há muita desconfiança de que o elemento estadunidense na matriz religiosa dos batistas brasileiros tenha levado a uma identificação com uma postura anticomunista e de adesão à política do Governo Militar. Mas faltam-nos estudos científicos que confirmem ou contradigam essas suspeitas.

Outro elemento que merece destaque aqui diz respeito aos movimentos religiosos carismáticos que campearam tanto no protestantismo histórico quanto no catolicismo a partir da década de 1960. É interessante o fato de que os carismatismos religiosos tenham encontrado lugar nesses dois ambientes concomitantemente. Para os batistas brasileiros, os movimentos carismáticos representaram uma fragmentação ainda maior em termos denominacionais, e uma relativização de uma visão tradicionalista arraigada entre essas igrejas. Em 1965, entre os batistas brasileiros aconteceria a maior cisão interna dessas igrejas, com o aparecimento da Convenção Batista Nacional (CBN) impulsionada pelos ventos carismáticos. No Brasil, a inserção da chamada Teologia da Prosperidade se daria na confluência junto às tendências carismáticas. O neopentecostalismo, por exemplo, é ao mesmo tempo um movimento carismático (no sentido técnico que estamos lhe atribuindo aqui).

Ao que tudo indica, entre os batistas brasileiros, em especial, os efeitos de todas essas alterações religiosas nunca foram bem administrados. No lugar de assumir o pluralismo como efeito normal de sua liberdade, tais igrejas o representaram como uma ameaça à sua própria identidade. Por tabela, muitas dessas comunidades, numa atitude autodefesa, refugiaram-se num tradicionalismo profundamente prejudicial ao seu próprio crescimento numérico. E a grande contradição advinda disso é a seguinte: mesmo gozando de grande credibilidade perante a sociedade brasileira como um todo, os batistas têm tido um crescimento numérico muito menor em relação àqueles grupos cuja imagem é supostamente menos credenciada perante a mesma sociedade. Em complemento a isso devemos destacar que os batistas brasileiros estão os grupos cristãos cuja atividade missionária está mais em evidência. As grandes articulações coletivas dos batistas brasileiros – em âmbito, mundial, nacional e estadual – são todas de natureza missionária. No entanto, é claro o desnível de crescimento numérico em relação aos grupos cuja ocupação missionária não é tão evidente. Não é esta uma contradição interessante e digna de uma boa investigação?

Conclusão

Uma das perguntas que nos surgem nesses 400 anos de presença batista na história mundial seria a seguinte: existe um legado especial desses grupos religiosos à história do Ocidente? Pessoalmente, eu identificaria esse legado na construção de um sujeito portador de liberdade. É bem verdade que a liberdade de consciência, enquanto um dos valores mais caros ao liberalismo moderno, tem sido identificada como um dos elementos na base do individualismo radical de nossos dias. Mas não podemos fazer uma ligação tão direta assim – entre o liberalismo moderno e individualismo atual – sem passar por uma discussão atenta sobre o neoliberalismo e as condições sócio-político-econômicas que lhe possibilitaram. Por outro lado, quem entre nós estaria disposto a abdicar de sua liberdade de consciência em nome da seguridade e do controle ideológico das igrejas e do estado?

Os batistas têm, portanto, direta participação na construção do sujeito ocidental, tido por digno em sua pessoalidade – teologicamente diríamos feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27) –, portador de direitos fundamentais, responsável por sua própria conduta, que emerge na modernidade. Repito: se essa concepção descambou hoje num individualismo indesejado, nem por isso desejamos retroceder ao nível de uma impessoalidade tutelada pelas igrejas ou pelo estado. Devem existir outras vias melhores.

A liberdade individual necessita ter como único produto uma atitude individualista? O pluralismo ideológico precisa ser sempre visto como corrupção da liberdade? E ninguém pense que essas questões estão referidas somente à vida das comunidades batistas. Elas são questões que dizem respeito ao todo de nossas sociedades, e que são fomentas por essa ocasião especial dos 400 anos de história dos batistas. Em outras palavras, essa ocasião nos fustiga a pensar não somente no futuro das comunidades de cristãos batistas. Elas nos fazem refletir nas alternativas que temos enquanto sociedade. Há alguma vivência da liberdade que não precisa desembocar no individualismo? Há algum tipo de vivência da liberdade que consiga conjugar o pluralismo ideológico e o comunitarismo fraternal? Ou já escambamos aqui para o utopismo?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

MUITA FORÇA CRISTINA!


Um modelo da opção preferencial dos pobres

Na mesma semana em que Cristina me visitou a fim de oferecer-me sua criança – a quem não pude adotar em função de um conjunto enorme de fatores –, um facho de esperança parecia iluminar timidamente essa história. Um dia após a visita de Cristina eu receberia um telefonema de alguém que havia lido e repassado via lista de emails o texto Cristina é invisível. De fato, nenhum outro dos meus textos proporcionou tanto retorno quanto este. Porém, o melhor desses retornos foi aquele em que um casal, até então desconhecido, se dizia desejoso de adotar a criança de Cristina.

Pela mediação daquela primeira pessoa que havia lido e repassado o Cristina é invisível, eu pude conhecer esse casal. Nós conversamos muito. Ouvi atentamente a história deles e a fundamentação emocional que embasava o desejo de adoção de uma menina. Tratava-se de “razões do coração” que não competem um detalhamento aqui. Mas posso lhes afirmar que a mais remota possibilidade de adoção de uma menina era suficiente para fazer brilhar os rostos daquele homem e daquela mulher.

Marcamos uma visita à Cristina, que em sua ida à minha casa havia deixado o seu endereço comigo. No percurso entre Maceió e a cidade de Cristina eu ia escutando de Marco Antonio – que é o pseudônimo que estou dando ao pretendente à adoção da criança de Cristina – mais detalhamentos de sua história junto a sua esposa. A fala dele estava aquecida por uma ansiedade parecida com aquela que as crianças mostram antes de receber os presentes no Natal. Já na cidade de Cristina, Marco Antonio chegou a cogitar a possibilidade de que ela tivesse voltado atrás em sua decisão de doar a filha. Afinal, já se havia passado vinte dias desde que Cristina me visitara. E de fato, esse é um lapso de tempo suficiente para mudanças significativas quando se trata de dilemas dessa natureza.

Antes mesmo que eu chegasse ao seu endereço, avistei Cristina no meio da rua. Fui ao seu encontro enquanto Marco Antonio preferiu não se dar a conhecer por ela, o que é sensato em todos os processos de adoção. A preservação da identidade dos casais que adotam em relação às famílias que doam é imprescindível, a fim de evitar futuros transtornos oriundos de arrependimentos e etc.

Cristina, ainda gestante, havia mesmo voltado atrás em sua decisão de doar sua menina. “Não quero mais dar a minha filha pastor, pois isso é um pecado de morte”, Cristina me dizia ali, no meio da rua mesmo. Num primeiro momento, a assertiva “pois isso é um pecado de morte” soou para mim como uma simples força de expressão. Aquilo havia me passado como todos esses ditos religiosos que internalizamos e dizemos com muita espontaneidade, como “ave maria”, “pelo amor de deus” e tantos outros... No povo pobre esses ditos são ainda mais freqüentes e variados. Portanto, não me causou nenhuma suspeita.

Mas o “pois isso é um pecado de morte” de Cristina, na verdade, era um fragmento confessional do que lhe havia ocorrido naquele interregno de vinte dias entre sua visita à minha casa e o meu encontro com ela em sua cidade. O “pois isso é um pecado de morte” de Cristina confirmava tristemente as suspeitas de Marco Antonio. De fato, naquele interregno algo havia ocorrido.

Na contramão do meu conselho de vinte dias atrás, Cristina não havia procurado o Conselho Tutelar de sua cidade. Ela procurara uma igreja evangélica pentecostal. Ali, diante dela no meio da rua, e num espaço mínimo de tempo, eu me dava conta do tamanho de minha ingenuidade. Entre a burocracia fria e vagarosa de nossas instituições públicas e as promessas quentes e imediatistas do discurso pentecostal, como alguém na situação de Cristina faria opção pelas primeiras? E ela me dizia que na igreja pentecostal havia sido convencida de que doar sua criança seria um pecado mortal. “O pessoal da igreja está me ajudando; estou conseguindo um trabalho numa casa de família e voltei para o meu companheiro”, ela me relatava. “Minha filha nasce ainda esse mês, e eu não posso dar não, pois isso é um pecado de morte”, ela completava.

Sem dúvida alguma, essa bifurcação – a frieza e vagarosidade burocrática de nossas instituições públicas e o fervor imediatista do discurso pentecostal e neopentecostal – não pode nos escapar se quisermos compreender menos unilateralmente o sucesso desses últimos grupos religiosos. Aqui também está o “calcanhar de Aquiles” dos movimentos religiosos ditos progressistas, entre eles a própria Teologia da Libertação. Entre esses movimentos, quer católicos ou protestantes, uma das diretrizes fundamentais é a de que os pobres e oprimidos devem se tornar “sujeitos de sua própria história” e “autores de sua própria libertação”. Mas o que fazemos com as opções de libertação que os próprios pobres e oprimidos estão fazendo sem a nossa assessoria? Ou os tais só serão “sujeitos e autores de sua própria libertação” se adotarem o nosso projeto libertário previamente formulado?

“Mas Cristina, qual é o pecado mais mortal: doar sua criança para a adoção ou criá-la sem as mínimas condições como você mesma havia me dito há vinte dias?”, eu lhe retrucava. Cristina, por seu turno, insistia em sua decisão, que obviamente deveria ser respeitada. E foi. Primeiro por mim mesmo ali, e posteriormente por Marco Antonio. Ela insistia no suporte comunitário que começara a receber do seu novo grupo religioso como condição factível de conceber e criar sua filha.

E eu desejo encerrar essas narrativas e reflexões sobre a saga de Cristina com uma citação de Durkheim. Isso para continuar sendo fiel a uma tradição protestante de racionalização das coisas, e de um certo flerte indecente com o discurso e a mentalidade moderna. Se Cristina foi fiel à postura do povo pobre em optar pelas promessas e o imediatismo do discurso pentecostal – e nisso ela está acompanhada de milhões de outros brasileiros e brasileiras –, por que eu não deveria continuar fiel à minha tradição protestante no modo racionalizante com que vê o mundo? Portanto, com a palavra Durkheim. A interpretação dele compete a cada um (o que é outro dogma protestante!):

“Os crentes, isto é, os homens [e mulheres] que vivendo a vida religiosa têm a sensação direta do que a constitui [...] sentem que a verdadeira função da religião não é fazer pensar, enriquecendo o nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir, nos ajudar a viver. O fiel que comungou com o seu deus não é apenas um homem [e uma mulher] que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é um homem [e uma mulher] que pode mais. Ele [e ela] sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado [e elevada] acima das misérias humanas, porque está elevado [e elevada] acima da sua condição de homem [e de mulher]; acredita-se salvo do mal, aliás, sob qualquer forma que se conceba o mal” (DURKHEIM, Émille. Formas elementares de vida religiosa).

Muita força Cristina!

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

CRISTINA É INVISÍVEL


Ser mulher pobre, desempregada e sozinha no interior de Alagoas


Cristina é o nome fictício que estou dando à mulher que bateu à minha porta ontem (18/08) à tarde. Magra, um pouco pálida, acompanhada de Cláudio, que é outro nome fictício que estou dando para seu filho de 10 anos. Cristina trazia nas mãos uma sacola plástica fustigada por meu olhar curioso. Eram produtos alimentícios que ela havia angariado nas casas anteriores por onde passou a pedir. Mas ela não veio nos pedir nada. Do contrário, veio nos oferecer.


“A esposa do pastor está? Eu gostaria de falar com ela”, foram as primeiras palavras que Cristina me disse à porta. “Sim, está. Mas do que se trata? Eu sou o pastor!”, lhe respondi. Então Cristina me disse ali mesmo que vinha do interior de Alagoas, de carona em carona, com o objetivo de oferecer sua filha para adoção, assim que a mesma nascesse. Foi quando vi que Cristina estava grávida. “Já estou com oito meses”, disse ela. Disse-me que já havia oferecido sua criança a outros casais do bairro onde moro, e que chegou à minha casa indicada por alguém que não sabia identificar. Não havia almoçado àquela hora (14:00h), ela e o filho que lhe acompanhava. Eu lhe pedi que entrassem a fim de comerem e descansarem um pouco. Isso em meio a muitas dúvidas e suspeitas.


Enquanto lhe preparávamos o que comer Cristina nos falava sobre os pormenores de sua sina. Trinta e sete anos de idade, pobre, desempregada, mal tratada e agora abandonada pelo companheiro, mãe de dois filhos, 10 e 2 anos de idade, a um mês de conceber uma menina. Dava-nos detalhes do cortiço que lhe serve de moradia. Contava-nos sobre as péssimas relações com seus irmãos de sangue e sobre suas experiências religiosas na Igreja Universal do Reino de Deus, sobretudo sobre um rancor próprio de quem se dizia explorada naquilo que tinha e que não tinha. Dizia não ver outra saída para sua situação, senão a doação da criança que trazia no ventre.


Tratei de expor com muita franqueza as razões pelas quais eu e minha esposa não poderíamos adotar sua criança. Disse-lhe, inclusive, que esse tipo de coisa não se resolve assim, num supetão. Orientei-lhe a deixar de oferecer sua criança de porta em porta. Muito embora eu acredite agora que ela não o tenha feito. Somente agora me surgiu a convicção de que Cristina veio diretamente a mim, pela indicação de gente que me conhece e sabe que não tenho filhos. Mas isso pouco importa. Encorajei-a para que buscasse o Conselho Tutelar de sua cidade a fim de que, por meio dele, ela pudesse iniciar um processo de doação-adoção conforme os trâmites legais.


Eu nem preciso me estender muito para deixar claro que Cristina é invisível para nossa sociedade do empreendimento, do entretenimento, da superinformação, da inclusão digital, da conectividade, da alta qualificação profissional e acadêmica, do poder de consumo, da idolatria do poder, e de todos os valores ditos “pós-modernos”. A invisibilidade de Cristina é tal que até mesmo uma teoria sociológica como o marxismo não pode captá-la, posto que não lhe cabe a noção de proletariado. A não ser que demos um jeitinho e a incluamos num pobretariado. Cristina é invisível às estatísticas governamentais. Não foi contemplada pelo Fome Zero, e muito menos cabe nas estimativas do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que considera pobre no Brasil quem vive com menos de o equivalente a um dólar por dia.


Cristina é invisível para nossa sacrossanta Teologia. Não poderia ser dizimista e ofertante fiel. Não poderia colaborar nem em nossas campanhas missionárias nem em quaisquer outras: fogueiras santas, gideões, 318 e variantes. Sem condições de “sacrificar no altar de Deus”, a benção da prosperidade econômica lhe estaria vedada. Dificilmente acompanharia nossos exercícios de hermenêutica e de exegese, e talvez com alguma paciência chegasse ao fim do nosso sermão de três pontos e de temas abstratos e desencarnados. Cristina mal poderia ter acesso ao circuito de consumo de nosso universo gospel. CDs e DVDs, mesmo os piratas, lhe seriam de difícil acesso. Não poderia assistir sequer aos shows de nossas melhores bandas, cantoras e cantores evangélicos.


Mas Cristina também é invisível para nossa Psicologia. Como pagaria o valor médio de nossas seções psicoterápicas? E ainda que nossa compaixão lhe abrisse as portas da clínica por nenhum preço financeiro (coisa que o Código de Ética da classe não permite), permaneceria invisível e não-captável por nossa rede conceitual, pouquíssima interessada em dialogar com o cotidiano desse tipo de gente, e pouco propensa a aceitar com seriedade a contextualidade sócio-histórica dos processos de subjetivação.


“Na minha cidade não tem trabalho não, só tem corte de cana, que não dá pra mim”, ela me dizia. Cristina tem no trabalho um de seus valores, obviamente aquecido pela necessidade. Mas ela não sabe que também é invisível aos usineiros. É franzina, está grávida, não pode alcançar as metas diárias estipuladas pelos usineiros para os cortadores de cana. Como poderia cortar entre cinco a dez toneladas diárias? É improdutiva! Invisível, portanto.


Ela me pediu somente um exemplar da Bíblia e uma oração. Cristina tem fé. “Ainda não sou de igreja, não chegou meu tempo ainda”, dizia ela. “Meu filho me pede para ler a Bíblia para ele, e me chama para a igreja”, ela continuava. “Quando leio a Bíblia não entendo muita coisa, mas me vem um conforto ao coração”, ela completou. Na sua invisibilidade Cristina crê em Deus, seu companheiro na invisibilidade. Cristina, que não é vista, vê num Deus invisível um alento, um “conforto que vem ao coração”. E eu já não tenho certeza de que isso seja exatamente ópio, alienação ou quietismo. Porque na certa Cristina se sente vista por alguém, ainda que esse alguém não seja visto por ninguém. E esse é um lugar existencial acerca do qual dificilmente os visíveis podem falar com precisão: justamente porque não vêem.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

NOSSAS VEIAS CONTINUAM ABERTAS


Os vampirismos sócio-econômicos de ontem e de hoje em Alagoas


Sobretudo as veias do povo alagoano continuam abertas.

Alagoas talvez sirva de exemplo como micro-imagem daquilo que tem sido a macro-imagem da América Latina de cinco séculos para cá. Esta, um subcontinente em relação ao Mundo; enquanto aquela, um sub-estado em relação ao Brasil. Não entendo como tanta gente inteligente pode se referir à história e falar em Modernidade e em Pós-modernidade como se estivesse falando de fenômenos comuns a todo o globo. Geralmente é o que muita gente inteligente faz: conta a história de uma pequena aristocracia européia como se esta fosse a história dos demais recantos do planeta.

Mas pode ser que tais pessoas assumam o seguinte: que o chamam de Modernidade e Pós-modernidade em sentido amplo e oni-abrangente tenha uma face nos países periféricos que representa o reverso do progresso, da emancipação do saber, da afirmação dos valores humanos fundamentais, e etc. Ou pode ser que tais pessoas assumam inclusive que aquilo que em relação ao Velho Continente chamam de Modernidade e Pós-modernidade tenha como seu outro pólo dialético a negação de uma Modernidade e de uma Pós-modernidade aos países do Sul. Assim, teríamos aqui também uma Modernidade e uma Pós-modernidade, mas não como reflexo de conquistas, rupturas e avanços feitos lá, mas como subjugação daqui, para que as conquistas, rupturas e avanços feitos lá, fossem possíveis. Dito mais simplesmente: as conquistas, rupturas e avanços de lá só foram possíveis com a espoliação, a negação e o aviltamento que se produziu cá. Assim, os países periféricos entram no circuito tanto da Modernidade quanto da Pós-modernidade, não como protagonistas, mas como figurantes sobre quem os protagonistas devem subir às costas a fim de aparecer.

Eduardo Galeano disse todo esse meu blá-blá-blá com uma simples metáfora: a América Latina [assim como todos os países do Sul do Mundo] foi e continua a ser um continente de veias abertas.

O estado de Alagoas então...

A história desse estado merece uma atenção especial. E não digo isso como forma de curiosidade acadêmica estéril. Digo isso como expressão da vontade de discernir o presente e entender a feiúra das relações sociais desse lugar. Digo isso como forma de entender a resignação das maiorias populares e a ausência em nosso tempo de revoluções estruturais marcantes. Digo isso como forma de entender os meios ideológicos que perpassam as relações de classe nesse estado de belezas naturais incomparáveis. E digo isso como forma de discernir em que medida “o opressor está internalizado no coração do oprimido”, cerrando a este a possibilidade da ação revolucionária que produza coisas novas.

E eu sei que a respostas a essas indagações não estão todas lá, no passado da formação civilizatória de Alagoas. Há muita pista aqui mesmo, sobretudo no cotidiano da gente pobre e trabalhadora. Mas lá atrás, no passado, também há sinalizações cujas marcas são visíveis aqui, no presente, de certo que passado e presente vão se amalgamando de tal maneira que mal podemos discernir uma coisa da outra. O passado se atualiza nas condições do presente, e o presente atualiza o legado do passado.

É certo que a formação civilizatória de Alagoas faz parte dos processos de formação histórica de todo o nordeste do Brasil. Inclusive, quem quiser entender aquela não pode fazê-lo a despeito desta. Estão organicamente correlacionadas. Mas Alagoas parece possuir algumas peculiaridades que lhe dão um tom diferenciado nesse contexto maior. Como os demais estados nordestinos da faixa litorânea que vai da Bahia ao Ceará, ela está inserida no filão do “império do açúcar”. Uma de suas peculiaridades reside justamente em ter tido seu processo de construção civilizatória ligado exclusivamente aos condicionamentos e exigências dessa economia cruel e sem coração. E mais do que isso, Alagoas consiste num caso pontual e específico da incapacidade de se desprender dessas correntes, não visto nos demais estados nordestinos que também experimentaram o vampirismo dos barões da cana de açúcar.

Manoel Diegues Jr., historiador local, mesmo de uma perspectiva conservadora e um tanto elitista, conseguiu demonstrar numa obra clássica entre nós, como a monocultura da cana de açúcar foi imprimindo seus traços de influencia na vida e na cultura do povo alagoano, no seu jeito de ver e ler o mundo, na sua forma de compreender as relações interpessoais, e etc. O nome do livro dele é O bangüê das Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional.

Mas é verdade que se a oligarquia agrária e açucareira de Alagoas teve lugar de destaque na formação da alma civilizacional desse estado, é bem verdade que atualmente sua influência nas dinâmicas econômicas vai declinando lentamente. Aleluia! Mas também é verdade que quando um predador vai dando mostras de cansaço e suas presas vão ficando frouxas, outros predadores, animados pelo cheiro forte de sangue no ar, enchem os pulmões a fim de continuar a espoliação iniciada pelos primeiros. Estes sabem muito bem que as veias desse povo sofrido continuam abertas. E eu falo de imagens que vejo todos os dias no próprio cotidiano de quem se relaciona com gente ligada às usinas sucroalcooleiras. Aqui mesmo na Usina Brasil Etanol, próxima a mim, os operários do campo e do chão de fábrica já não têm mais o que oferecer em termos de reservas hemáticas aos seus empregadores. Estão à espera de que seus novos patrões estrangeiros ofereçam algum vintém pela sua própria alma!

E o povo?

Além do flagelo de uma vida assim, negada e instrumentalizada a serviço do enriquecimento de meia dúzia de famílias “nobres”, que marcas atravessam esse povo na sua própria constituição subjetiva? De um ponto de vista da Psicologia Social, que marcas essa tragédia civilizacional imprime nos processos de subjetivação das massas populares?

Desde a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, ninguém mais pode infantilizar a grande banda espoliada das sociedades latino-americanas. Ninguém mais pode pintar uma imagem dócil e ingênua do pobre. Desde o esforço teórico-prático de Freire somos desafiados a discernir os conteúdos ideológicos projetados nos processos de subjetivação dessa gente toda. Freire dizia que o oprimido tende a hospedar dentro de si a imagem de seu opressor. E nos alertava a compreender a produção de uma antropologia e de uma visão de mundo propriamente burguesa, latente no coração das massas populares. Tentando repetir isso por metáfora, eu diria que a sucção do vampiro, além de fragilizar a vítima, também inocula na mesma o vírus do parasitismo e da exploração do outro. E de novo eu falo de imagens do meu cotidiano. Falo de gente procedente das classes desprivilegiadas cuja visão de mundo é tacitamente opressora, e cujas relações interpessoais do cotidiano deixam isso evidente. Gente até de igreja! Infelizmente.

Então, só posso concluir dizendo que a atividade libertadora aqui – quer religiosa, política, acadêmica ou simplesmente existencial – é maior que aquilo que a primeira vista se podia imaginar. Mas quem tem posto a mão no arado não pode mais olhar para trás, a menos que queira...

domingo, 2 de agosto de 2009

O SANTO E O PROFANO NO CENTRO DA VIDA


Ambiguidade existencial e intensidade de fé na vida de Sansão


Há santidades tão necrófilas e mortificantes que cheiram a mais asquerosa profanidade. Há profanidades tão apaixonadas pela vida que exalam o aroma da mais bela santidade.

***

Ninguém pense que a Bíblia é uma coletânea onde figuram exclusivamente homens e mulheres santos. Não! A virtuosidade de um aqui, de outra acolá, está entre os seus temas. Mas muito diferentemente de nossa compreensão cristã, o profano também é na Bíblia um lugar da ação de Deus. Se a Bíblia consistisse numa coletânea estritamente dedicada a gente santa, Sansão jamais poderia figurar ali. Mas figura! Ao lado de José do Egito e de Moisés, de Samuel e de Daniel, de juízes virtuosos e de profetas destemidos, a Sansão o livro dos Juízes dedica quatro capítulos inteiros (Jz 13-16).

Sansão foi um mulherengo nato. Nos quatro capítulos a ele dedicados na Bíblia, relacionou-se com três mulheres. Casou-se com uma pagã filistéia a contragosto de seus pais (14,1-3). Numa passada por Gaza, usou os serviços de uma prostituta (16,1). Além disso, cedeu aos encantos mal-intencionados de outra filistéia – Dalila (16,4).

Também figurava entre daqueles que costumam resolver suas questões à base de muita agressividade e violência. Para de sanar uma dívida, matou trinta homens a fim de obter o produto a ser pago – trinta indumentárias de nobreza (14,19). Num único dia, assassinou a mil homens usando a queixada de um jumento. Ao fim dessa “legítima defesa”, no lugar de se penitenciar e suplicar por perdão diante de Deus, suplicou por água, a fim de saciar sua sede. E Deus o atendeu (15,14-20)!

Foi um péssimo marido. A impossibilidade de conviver com sua primeira esposa era tal que moveu o pai desta a instaurar um divórcio forçado entre jovem casal (15,1-2).

Sansão também tinha a vingança no fundo de sua alma. Movido pela ira advinda daquele divórcio forçado, matou trezentas raposas fazendo delas feixes com os quais ateou fogo às plantações dos filisteus, destruindo seus estoques de cereais e os seus olivais, tudo sob o alento da vingança (15,3-6). Tendo recebido a notícia de que tais fatos tiveram implicações trágicas para seu ex-sogro e sua ex-esposa, promoveu outra chacina a fim de se vingar dos pretensos assassinos destes (15,7-8).

A mentira parece ter sido outra de suas péssimas qualificações morais. Questionado três vezes por Dalila acerca da origem de sua força física incomum, Sansão lhe apresenta três razões mentirosas a fim de manter guardado seu segredo (16,5-14). Foi a impaciência extrema gerada pelas insistentes investidas de Dalila, e não o desejo de dizer a verdade, que coagiu Sansão a confessar-lhe a fonte de sua força sobre-humana (16,16-17).

O último dia da vida de Sansão foi marcado pelo vermelho do sangue dos filisteus. Seu canto do cisne consistiu no maior dos atos de violência de sua biografia. Assim, uma das últimas palavras do redator é esta: “E foram mais os que matou na sua morte do que os que matou na sua vida” (16,30).

Obviamente não temos aí nenhum bructa facta, isto é, não temos narração pura de fatos históricos. O que temos tanto na saga de Sansão quanto na de outras personagens bíblicas é a mescla inteligente de fatos históricos com muita teologização. História e estória. Conforme a compreensão do redator (e de sua tradição), alguns desses atos profanos de Sansão foram tranquilamente legitimados pelo próprio Espírito de Deus (cf. 13,25). Sua vitória no embate contra um filhote de leão é possível por conta do Espírito de Deus (14,6). O assassinato dos trinta homens a quem usurpou as indumentárias de nobreza também é vaticinado pelo Espírito de Deus (14,19). Semelhantemente o é a chacina dos mil homens (15,14). Por fim, a apoteose de sua agressividade no templo de Dagon é precedida por uma oração a Deus (16,28).

Numa correspondência da prisão Bonhoeffer dizia ao seu amigo Eberhard Bethge que não entendia a razão das coisas serem assim no Antigo Testamento:

“Por que, no Antigo Testamento, mente-se energicamente e muitas vezes para a honra de Deus (acabei de reunir as passagens); mata-se, engana-se, rouba-se, divorcia-se, até mesmo se pratica a prostituição (cf. a genealogia de Jesus), duvida-se, blasfema-se e amaldiçoa-se, enquanto no Novo Testamento tudo isso não existe? Estágio religioso “preliminar”? Isso é uma explicação muito ingênua, pois trata-se do único e mesmo Deus. Mas vamos falar mais disso oralmente!”

As questões que me surgem dessa narrativa, todavia, são de outra natureza: (1) Por que a narrativa de um sujeito com um currículo tão ambíguo foi lembrada e acrescentada à Bíblia? (2) O que a narrativa da vida profana de Sansão poderia contribuir para a fé dos homens e mulheres de Israel, seus primeiros leitores? (3) E a nós, homens e mulheres de hoje, o que essa mesma narrativa tão profana tem a ensinar?

Vou arriscar uma hipótese:

A narrativa acerca de Sansão nos fala de um homem que viveu com invejável intensidade, de acordo com a fé de seus dias. E embora essa palavra não apareça uma só vez ao longo da narrativa, “intensidade” é a expressão oculta em cada ato dessa tragédia. Talvez “intensidade de fé” fosse a necessidade dos primeiros receptores da narrativa.

Somente hoje podemos chamar de “defeitos morais” tudo aquilo que Sansão vivenciou. Mas nos seus dias, tudo aquilo era visto como meios legítimos da ação de Deus na história. Mentira, violência, vingança, naquela conjuntura, eram tidos como elementos legítimos, conquanto que a honra própria e a honra nacional fossem mantidas. Estaríamos falando de uma fé “imoral”? Penso que não. Afirmá-lo seria cometer o equívoco de julgar aquela cultura religiosa à luz de nossos valores religiosos atuais. O máximo a se dizer naquele caso é que se tratava de uma fé “transmoral”. Todos os elementos da vida, desde os mais ambíguos, são potencialmente pertencentes ao circuito da ação de Deus na história. E Sansão os capitalizou ao máximo. Está absolvido!

E se essa narrativa tem alguma coisa a nos comunicar hoje, é isto:

Qualquer que seja a nossa fé, a nossa ideologia, a nossa visão de mundo, o ideal é que existencializemos isso ao máximo que pudermos!

Quando se trata da fé evangélica – falo daquela fé que carrega a qualidade inconfundível do Evangelho de Jesus Cristo, não dos grupos que carregam a simples alcunha –, a narrativa deve ser lida como um convite à maximização de suas virtudes: o amor, o serviço, o louvor. Ninguém é constrangido a repetir ipsis literis os atos de Sansão. Quem se atreveria? Mas todos nós somos convidados a imitá-lo na intensidade com a qual vivenciou suas convicções. Gente assim dá motivos para ser lembrada depois da morte, a despeito de toda ambigüidade.

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